Wednesday, November 12, 2008

O meu avô


Morreu há menos de um ano, uma semana antes do Natal, com noventa e um anos.

Sempre me impressionou a sua parecença física com o S. Beckett, mais brando, menos severo, pudera, menos atormentado, ou atormentado com assuntos bem diferentes, no exíguio espaço de raciocínio que disputava com a alzheimer.

Tenho algumas memórias apontadas do funeral, os cheiros, as pessoas, os gestos, guardei-os para uma melhor oportunidade, nunca soube muito bem como conseguir descrever a despedida da minha avó pequenina pondo-se em bicos de pés para lhe beijar os cabelos, depois de setenta anos casada com ele, depois de várias décadas a ampararem-se na velhice, nunca soube como descrever o que não são só estas palavras: "Adeus, meu amor". Comovi-me, foi tão inesperadamente terno. Ainda bem que assisti a isso, não tenho este sentimento ou esta experiência dentro de mim, nem se lesse, não acredito assim de repente no talento de alguém para me emocionar desta forma. Não acredito é demasiado. Não quero acreditar. Quero manter aqui uma reserva de exclusividade.

Muito curioso é saber que algumas células minhas, poucas mas algumas, foram sepultadas junto com o meu avô, ainda não pesei que mais significações ou alegorias daqui poderão surgir, é que com ele para debaixo da terra foram uns sapatos (outrora) meus, castanhos, muito provavelmente já com quase vinte anos de andaduras.
Era comum ser ele a herdar roupa e calçado que já não nos interessava, lembro-me de uma camisola de um verde bonito, um sobretudo cinzento com o qual mergulhei no chão com uma amiga (um episódio que está por aqui narrado, mais tarde tentarei acrescentar aqui a ligação), pois, e os sapatos, alguns pares deles. Tudo combinado com roupa comprada há muitos anos, enfim, alguma já deveria ser mais velha do que eu, alguma seria até da idade dos meus pais.
Nunca mais lhe visitei a campa, vejo-o melhor quando penso nele, em qualquer lado em que esteja, o pouco que dele está ali é o que menos me interessa.
(A poucos dias de distância do Dia dos Fiéis Defuntos, que belo nome, percebo por que me ocorre isto.)
Samuel seria um pouco mais velho do que ele, (alías, nos setenta e três anos em que ambos foram vivos em simultâneo, o Beckett sempre foi dez anos mais velho do que ele, que estranha coisa de corrigir de que estranha forma, armadilhas do raciocínio e armadilhas da linguagem), por isso o Manuel é que poderia ser um sósia do Samuel, o que me deixa pouco favorecido nesta vaidade em mostrar a parecença de ambos.
Não consigo largar o assunto sem dizer, se bem que não vou agora... abjurar o parentesco com o meu Manuel, apenas afirmar que sou um bocadinho neto do Samuel... por uma afinidade muito frágil de defender, muito contestável, suportada apenas na aparência... vou colocar um ponto final e não mexer mais no assunto à espera que ninguém o incomode e possa assentar serenamente, para grande conveniência minha.

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