Sunday, June 20, 2010

Diletantismos

Leio-te os pensamentos, sabes que o consigo fazer, horroriza-te que tanto consiga, a mim horroriza-me não te ler pensamentos assim:

"Seigneur! donnez-moi la force et le courage. De contempler mon coeur et mon corps sans dégoût! "
(Baudelaire, Les Fleures du Mal)

O que faz lembrar isto:

"... banqueteados cada hora de muitos açoutes..."
(Fernão Mendes Pinto, Peregrinação)

E tentar imaginar uma cura para os teus delírios de grandeza.

"Satíricos e poetas, bem como filósfos e homens de ciência, eram capazes de referir que se os triângulos tivessem deuses, os seus deuses teriam três lados..."
(Christopher Hitchens, Deus Não é Grande)

Porque são isso mesmo: grandes, delírios.

"Basta dizer que o orgulho e a análise matemática se tinham unido a tal ponto que lhe davam a ilusão de que os astros obedeciam aos seus cálculos..."
(Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo)

Tanta ilusão minha, não poderia nunca desprezar agora a desilusão igual, isso não, embora tenha já tido a minha suficiente dose de lavradeiras:

"Oh, como folgou nosso bom cavaleiro em tendo feito este discurso, e mais quando achou a quem dar o nome de sua dama! E foi, ao que se crê, que num lugar perto do seu havia uma moça lavradeira de mui bom parecer, de quem ele andou enamorado um tempo, ainda que, segundo se supõe, jamais o tenha sabido ou ele mostra de tal dado. Chamava-se Aldonza Lorenzo, e a esta pareceu-lhe dever dar o título de senhora dos seus pensamentos; e, buscando-lhe nome que não descondissesse muito com o seu e quase aproximasse e se encaminhasse para o de princesa e grande senhora, acabou por lhe chamar Dulcineia de Toboso pois era natural de Toboso..."
(Miguel de Cervantes Saavedra, O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha)

Um homem vê princesas em qualquer seixo rolado; em qualquer rufia se força a matéria prima de uma musa. Releio musa prolongando a primeira vogal, que momento tão oportunamente bovino.

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Não devo disfarçar o grau e tamanho da decepção quando soube ter havido uma mulher algarvia, sobre quem ficaram relatados os feitos particulares, da qual o Saramago se serviu para a caracterização da Blimunda. Também ansiava que a Passarola fosse invenção só sua. Fiquei com esta mágoa de que o que é formidável e surpreendente e imaginoso no Memorial do Convento poderia ter sido tudo recolhido por aqui e acolá. De repente, maldição, percebi quase toda a minha ingenuidade por crer que tudo o está dentro de um livro é uma fantasia original de cada autor. Ainda hoje não quero deixar de acreditar, não quero deixar de ser ingénuo.

No entanto, isso não muda a violência belíssima da ficção do homem.

Abraçado agora ao ponto final, o último de todos, adeus, José, tenho dificuldade em calar a alergia ao preconceito com que o perseguiram e ainda perseguem. Pergunto, por que razão nunca ninguém teve a deselegância de afirmar que o Lobo Antunes é um autodidacta? Garanto, ambos aprenderam a ler e a escrever da mesma forma. Mas... um era (e nunca se deixa de ser, quando assim se nasce?) plebeu e o outro um protegido da alta burguesia.

O sucesso de um plebeu é intolerável.

Ainda me rio de um dito espirituoso largado na apresentação do Lobo Antunes festival de Paraty, penso que em 2009, em que insinuavam ter havido um "erro de português" ao eleger o Nobel da Literatura nesse ditoso ano de 1998, adulando o António à custa do plebeu do José. Ora, ora, é uma perversão intelectual persistir com este preconceito para com os plebeus. Merda, cocó e matéria fecal, pensava conseguir resumir aqui o meu luto e deu-me para isto...

Pobre coitado, não nasceu ensinado, como os outros, os especiais, nem teve uma educação esmerada, como os outros, os especiais, teve de lutar, trabalhar e esculpir a rude pedra da sua educação. Sozinho.

O talento não é plebeu, bem ao contrário, o talento só não é burguês ou aristocrata ou divino porque só é um valor mundano para os mundanos. É um dom do espírito. É mais respeitável que o sagrado.

"São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda."
(José Saramago, Memorial do Convento)

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