Monday, May 08, 2006

Comissão 2.0 - um fadinho sem (estridente) guitarra

Senhor de Chamilly,

Fantasio a surpresa que vos trará esta carta, depois de me dizer e desdizer, depois de prometer amar-vos, e prometer desamar-vos, regressando agora ao silêncio da vossa leitura, ocupando o vosso espírito preenchido por toda a espécie de conquistas. Seguramente terei alguma relevância na vossa rememoração. Pois, adianto desde já que tenho inspirado e concretizado vários amores, e raramente senti com outros homens e mulheres estados de enlevação tão intensos quanto vos inspirei a sentir, e eu própria senti. Convosco, e com outros homens e mulheres.

Surpreendo-vos? Já não concebeis a Mariana melancoólica persistente, cismando na gestação de uma longa e estimada dor, vogando entre o desespero e o conforto trazido pela mágoa, devota, fidelíssima até à redução a pó mergulhado num sepulcro; que Mariana sou eu que agora se vos apresenta?
Creio que duas Marianas conhecestes: a amante inaugurada, e a amante amarga e viúva, vossa correspondente. Sim, viúva, pois tive de assassinar-vos para poder produzir o luto que originou esta terceira Mariana; olá, Noël; olá, Mariana.

A Mariana que se evadiu de Beja, com o incentivo cúmplice dos seus irmãos Baltazar e Maria Peregrina, dois meses vivendo em Oviedo, um ano e uns dias em Pau, e desde há pouco menos de dois anos vossa vizinha, na colina que avistais da janela do vosso quarto, onde me permito imaginar que estais agora segurando estas folhas de papel descaradamente conterrâneo vosso (assim como o das minhas duas anteriores cartas que recebestes), e de onde o vosso olhar imediatamente se desviou para contemplar a vista e tentar encontrar vestígio meu. Olhai, aqui em frente, em Dennevy.

Estais sobressaltado, tentanto ocultar esse ansioso sentimento de Sophie de Volanges (1) que passeia os seus prendados bordados, e a felicidade de um ventre inflamando-se após frequentes visitas vossas ao baixo-ventre da lindíssima senhora!
[Passear a felicidade é de uma nobreza que vos falta em absoluto; devíeis descarregar o vosso semblante adminutim, ou resulta assim melhor na vossa caça/recolecção (2) de amantes?]

E assunto tão oportuno é este!, as vossas repetidas visitas ao baixo-ventre de muitas outras senhoras são uma oportunidade de coligir um tratado sobre os abusos nos jardins do Senhor!
Tanto odaliscas quanto esposas prometidas ao meu Amo, repetidamente todas as amantes do harém de Deus serviram o vosso deleitado contentamento!, quereis lista detalhada com datas e nomes? Não sei que opinião (furiosa ou condescendente?) terá o meu Deus deste vosso insofreável e irregular apetite, importa-me tão-só o desígnio que eu própria persegui, Senhor de Chamilly: perseguir-vos.

Escrevi-vos anteriormente sobre a necessidade de um artifício para nos fazermos amar. Não um qualquer artifício; incidentes e acidentes podem bastar, pode a natureza soer conseguí-lo.
Quero revelar-vos que mais delicado artifício é o trabalhado para revidar o amor recusado.
Revelo-vos esse meu talento, aprimorado nos detalhes - como este que me envaidece - de enviar daqui as cartas para Portugal, para vos serem reenviadas com o lacre do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição. Deixei o papel indígena para me denunciar. Não fostes capaz de o aperceber, não vos censuro; com suficiente insistência, conseguiria que me chegasse a Beja qualquer luxo ao alcance da fortuna dos Alcoforado (apesar da fertilidade de minha adorada e ida mãe, acudida pela assídua e incansável presença do senhor Possimando no seu baixo-ventre, vai extinguir-se a nossa linhagem; Baltazar há já algum tempo se professou, Maria Peregrina continua – cada vez mais assustada – reclusa no convento em Beja; apesar da plena utilização dos instrumentos de prociação que Deus me deu, não se adivinha uma geração mais, glória ao falhado pai), seja este papel de aspereza quase sensual único na vossa terra, sejam os vinhos mais raros e caros – que me desvergonham – desta Borgonha (3). Tentei denunciar-me para que vos precavêsseis da minha revolta urdida em sangue e sebo recolhido desta fronte franzida por choros medievos, inconsequente desafio a que me propus!

Haverá razão perceptível pela vossa desrazão quanto aos motivos da minha já menos encoberta intriga?
Devo condescender um pouco mais do que uma partícula: as queixas de amor não são boas de ouvir senão em recitativos obrigatórios, ou em árias de grande estilo (4); que bárbaro o meu engano!, por momentos tão inflamada de amor que julgava ser ele tão poderoso que vos fizesse nele arder, e assim tão simplesmente vos prostrasséis diante do altar onde todas as transgressões se sucederam! Confundi em demasia o amor com o amante (5).
O que mais vos admiro? O que mais vos imitei...
Que improvável candura existe numa noviça? Que necessidade de carinho e afecto existe nestas mulheres roubadas às famílias preocupadas com dotes e riqueza? Que capacidade de entrega há nelas? Que qualidade de amantes existem nas mulheres prometidas a Deus?

Por isso vos aviastes no viveiro de amantes de Deus! Por isso vos imitei! E o quanto vos percebo!
Com que transporte se entregam! A pele suavíssima do peito, as ondulações até ao ventre por experimentar, a penugem quase invisível do interior das coxas que me arrepiam os lábios, o adivinhado tumulto se avanço para as mucosas, e, lá chegando e afagando o fechado e quente casulo, roçando língua, lábios e rosto naquela tensa boca de fogo e humidades fragantes, que exaltam o animal a ela unido, transpiro perfumes, anexo-me a ela, exibo-lhe o meu casulo, que se abre mais imensamente do que as penas do pavão, que expele magma do interior deste planeta retesado, que ritual tão graciosamente primitivo!, e não tenho como te fecundar senão com prazer, basta-te?, gerarás uma obstinada paixão porque te dediquei esta volúpia? Que insana consequência. Insana Mariana, insanos amantes de Mariana e de Noël de Chamilly! Que extraordinárias e inconscientes escolas de amantes são os conventos! Quantos aos seminários, deixai o Rui (6) pronunciar-se.

Quereis culpar o nosso Deus? Como vos atreveis? Tentai culpar o Monsenhor Onésimo Cepeda de Oviedo, esclarecedor por me haver demonstrado ser tão grande a maldade nas nossas intimidades, que logo me atrevi a concluir e elucidar esse senhor que sendo assim grande o nosso mal, igualmente e exacto seria o nosso prazer, porque diante do desejo de o conhecer, só remanesce ao pecador a vontade de o experimentar (7).

Imaginai, senhor, as blandícias de Sophie de Volanges instruídas e emendadas por esta distinta Mariana; foi excelente amante minha!, assim como o foram Mademoiselle de Tourvel, de Carnay, de Merteuil, de Rosemonde, Maria da Adoração, Maria de Jesus, Clara de Todos os Santos, Joana de Lencastre, Maria do Mar, Júlia Luz Maia, Carlota Luís, Constança Assis, Antonieta das Neves, Teresa, Ana, Felícia, Leonor, Umbelina, Clara, Luísa das Dores, Fátima, Maria Manuel, e tantas outras que alternaram entre as suas e as minhas garras.

Sabe de que pequena vitória posso arrogar-me? O pálido e sedoso corpo de Sophie de Volanges foi primeiramente conquistado por mim!, pudesse eu fertilizá-la e estaria agora um Alcoforado agigantando e agitando-se no seu ventre. Corrigi o tom de cada gemido seu nos momentos da nossa lascívia, cada estertor rouco tangente ao êxtase teve condução minha, pode supor-se proprietário destes feitos, talvez mediato, mas nunca imediato.
Tenho, também, de aplaudir-me por ter conseguir conquistar-vos esse notável corpo de prazer, não fora o vosso aproveitamento das minhas cartas, a sua troca de género e adaptação, e nunca haveríeis consumado qualquer contacto ou coito com ela... Neste sentido, Sophie de Volanges apenas foi conquistada pelo meu talento. Pudésseis vós experimentar o que consegue aquele corpo produzir nas minhas mãos...! Pudésseis vós... que desconchavo...!

Esta é a Mariana que derivou do vosso abandono. Vivereis comigo involutariamente. Não vos acerqueis de Dennevy com inquirições, tenho amantes instruídas vos afastar. Podereis julgar que ainda vos amo, tonta ilusão!, eu amo-me. E basta.

Notas do tradutor:
(1) parece que a família De Volanges tem mais drama amoroso na sua história do que no relata o senhor Pierre Ambroise François Chordelos de Laclos, cuja mais famigerada obra parece ter tido alguma inspiração nestas cartas;
(2) o colega antropólogo que se pronuncie sobre a possibilidade ou não da tradução do vocábulo anglo-saxónico, afrancesado, ou de mais distante origem;
(3) aqui está uma feliz tradução, fortuita, mas prova de que há traduções que resultam mais deliciosas do que a obra no idioma original
(4) Les Liaisons Dangerouses, página 121, malditos ficcionistas que sempre alguma inspiração mais que concreta lhes serve os propósitos da ficção...;
(5) L.L.D., página 171;
(6) Rui? Quem é o Rui? Será o irmão emigrado de um autor esquivo?, cuja sexualidade poderá ter aqui alguma pertinência? Que fazem os sacerdotes com os jovens enclausurados?, ou que sinceridades se despertam neste durante o recolhimento?
(7) L.L.D., página 173

Notas da consciência do tradutor: qualquer plágio de ideias ou descadarada cópia de frases da obra de Chordelos de Laclos é engano do leitor, respeita-se tão-só a honesta sequência histórica/propriedade intelectual;
Dennevy está situada a Oeste de Chamilly, se alguma encosta o autor ou narrador ou tradutor sugeriu, desenga-se o leitor, a Oeste de Chamilly estende-se uma várzea sem acidentes até Dennevy.

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