Tuesday, May 09, 2006

Comissão 3.0

Narração no plural.
Narração não utiliza o passado.
(próximo projecto, narração sem negações)

Judeu.
Salvador Maia, judeu.
Com esta graça se apresenta, e explica-se como sendo a única disponível para honrar o seu legado religioso.
Com a morte do Maia patriarca, responsável por lhe transmitir o culto e os ritos judaicos, Salvador tem de educar-se sem tutoria, buscando os deuses nas circunstâncias da vida, sem esquecer porém do povo que lhe ascende.
No dia em que acontece de nos conhecermos, aparece torcendo um papel, aproxima-se dos pais e do noivo da vítima, reúne-os na amplitude dos braços, amplo amplexo, aproxima-os de si, com uma expressão gravíssima, como que se preparando para falar a eminentes académicos sobre os males do mundo sem solução. Aqui vai um deles.
- Lamento, está morta.
Baixa um pouco a cabeça, roda-a e larga-os de imediato, abandonados ao seu choque e desespero e choro e dor e ruína sentimental; a morte servida como um comprimido forçado pela garganta abaixo, sem água. Salvador? Não.
Mais tarde, após concluir todos os pequenos procedimentos, emociona-se e confessa-nos que é a primeira vez que serve de arauto da morte. E, claro, não sabe lidar com as emoções próprias, de segundos, quanto mais de terceiros.

- Onde está minha chave? No sítio do costume? Que sítio é esse? Se gosto mais de café, chá, leite, água ou sumo de maçã? Carro vermelho ou azul-escuro? Cheiro a fósforo queimado ou a sofás de pele velhíssimos? Filmes a preto e branco e cinza ou programas de rádio sobre o regadio do milho e o viço das coníferas? Tempo frio e chuvoso ou solarengo?, roupas que me denunciam os mamilos? Raios, sou um homem, que interesse têm os mamilos de um homem?
Enquanto assistimos ao seu descarado gozo em confrontar-nos com as nossas pequenas e pouco sérias necessidades de exposição e troca de gostos (confirmações, as confirmações, e mais confirmações), lembramo-nos das vezes em que de repente fica sozinho numa mesa, num banco de jardim, num murete, porque algo ou tudo acumulado do que diz espanta toda a gente. Lembramo-nos de três exemplos, um é conhecido como a responsabilidade social sobre o (mau) cheiro.

- Os horrores que se produzem debaixo dos nossos braços…
Solução um: amputá-los, acima do ombro e recortando bem dentro do tronco para não correr riscos.
Solução dois: amputar o nariz a todos os habitantes do planeta. Parecem-me ambas bem razoáveis, agora devem ser ambas escrutinadas pelas massas, pela ditadura das massas, para melhor qualidade de vida neste sítio. Dizem-nos que o cheiro é uma propagação de moléculas de uma substância, apercebidas pelo nosso órgão olfactivo; muito bem, então com este facto científico se poderá atacar e fazer prender todos aqueles seres imundos que nos estão – literalmente – a borrifar com o sovaco pestilento. Já basta termos de levar com milhares de moléculas de excrementos de caninos, felinos, sem podermos atacá-los por isso, basta, é ordinário e demasiado.

Outra, que nos deixa ainda perplexos, é a interrupção de uma conversa sobre intelectuais; o pensamento de Bê, umas décadas adiante de Éfe e Zê; os originais da antiguidade, o Ésse e o Pê, que estão tão actuais e presentes nos ensaios de Dê, Tê, Jota, Éle e Quê; as concepções de Ó sobre a estranha obra de Cê; e Salvador que aproveita um intervalo pequeníssimo entre uma intervenção e outra que ameaça esboçar-se:
- Discuto sempre isso com todos os taxistas que encontro, mas não há consensos! Uns dizem-me que subindo a Avenida Mendes Carvalho, tomando a segunda saída na Rotunda do Marquês do Rio, seguindo a Rua do Infante até ao Parque dos Ventos, logo ali descendo aquela viela estreitinha, como se chama?, tem ali uma loja de sementes na esquina... do Outeiro, Viela do Outeiro!, e chegamos aos serviços de saneamento. Outros dizem-me que basta descer a Avenida da Graça... depende sempre do lado do mundo em que se está.

A mais rápida a espantar os ocupantes da mesa, durante uma discussão sobre as ocupações lúdicas das crianças de hoje, que não são tão interessantes quanto as da nossa infância, as de agora que não deixam tão boas recordações quanto as de então, não desenvolvem a cratividade, não se brinca com outras crianças, não isto, não aquilo, a modernidade está em falência, é uma herança muito má para as crianças. Bom mesmo é o exemplo da nossa infância, e talvez a dos nossos pais, e pouco mais além do que isso.
Salvador ainda tenta perceber se as opiniões em redor conseguem entender algum proveito material e intelectual no progresso. Não. Embevecidos pela nostalgia, nada mais passa nesse filtro pouco sóbrio.
- Sabeis, as infâncias das crianças de há quinhentos anos atrás são as mais felizes, muito mais felizes do que as nossas infâncias, e do que quaisquer outras, imagino as suas supremas alegrias atirando bosta uns aos outros, atirando grandes pedaços de bosta uns aos outros.

Esta capacidade de repelir as audências terá em breve, uns quantos dias apenas, um soberbo teste: Salvador Maia é orador convidado num congresso (medicina da séria, a dos volumes dignos do nome, e não daquela improvisada a cada disposição dos praticantes – prodígios dotados de poderes impressionamentes, especialmente a pose; nem da especializada na mistura fortuita de ervas e pós e flores); e esperamos com ansiedade para saber da resistência da audiência inteira do congresso. E o assombro dos presentes quando se apresentar:
- Judeu.

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