Tuesday, May 09, 2006

Comissão 3.1

Carta de uma admiradora ao autor:
“Custosamente, tenho de interromper os meus momentos consigo: comecei a ler o agora estreado romance e, duas horas e onze minutos depois, os desconfortos do corpo interrompem-me; sete minutos depois voltei à leitura; três horas e vinte e seis minutos depois dou sono ao corpo, doze minutos gastei nas mundanices que necessita a nossa superfície corporal, quatro horas e cinquenta minutos de sonolência, sono, despertar; mundanices alimentares e alguns cuidados com a superfície corporal, rituais menores, rotina de deslocação, concentração possível no trabalho, esforço agudo de comportamento mercantil (“comercial” já se usava no meu século, mas há palavras que tocam mais sininhos, especialmente se ouvidas no silêncio da leitura, permita que me expresse assim), aceno afirmativamente (tantas vezes que numa manhã poderia vazar um poço, estando o meu queixo ligado a uma nora); saída para almoço, várias necessidades básicas frugalmente satisfeitas, uma hora e dez minutos consigo nos degraus mais recatados do edifício, várias páginas, deslumbrada, custa-me interromper... concentração possível no trabalho (C.P.T.), esforço agudo de comportamento mercantil (E.A.C.M.), aceno afirmativamente (A.A.); rotina de deslocação (R.D.), rituais menores (R. M.), mundanices alimentares e alguns cuidados com a superfície corporal (M.A.A.C.S.C.); três horas e dois minutos na fábula, atendo aos desconfortos do corpo (D.C.) que me tomam dezoito minutos; volto ao terminável desassossego de páginas cheias de mundo novo; uma hora e cinquenta minutos depois o resto do corpo vence-me; sonolência, sono e despertar (S.S.D.) durante cinco horas e catorze minutos; M.A.A.C.S.C.; R.M; R.D.; C.P.T.; E.A.C.M.; A.A.; várias necessidades básicas frugalmente satisfeitas (V.N.B.F.S.), uma hora e doze minutos a descobrir o que ontem à noite ficou suspenso antes de bater página com página, e colocá-lo deitadinho a meu lado, ao livro, não a si, como também acredito desejar. Não consegui metê-lo numa sigla, nem num singelo acrónimo: apesar de o ter enclausurado nas minhas severas rotinas; não o esclarecerei se escrever que dá sentido e equilíbrio ao meu quotidiano, até por ser o contrário mais verdade. Desejo mesmo nunca o meter numa sigla, traga-me sempre mundo novo, vivo e diferente, amores ácidos, volúpias vertiginosas interrompidas no segundo imediato à plenitude (ah, ai, ui, tenho de fechar os olhos, apertando com força as pálpebras, largar-lhe a frase para tentar prolongar os prazeres um pouco mais, não tenho de adivinhar: os arrebatamentos que transmite são tão breves quanto intensos, e consegue sempre terminá-los com violência). Talvez pela minha condição feminina gostasse que a sua proporção de prazeres não fosse tão parca face às mágoas. Estou errada, claro, talvez ainda agarrada a ideais acolescentes.
Talvez imatura, talvez superiormente lúcida por querer mais ternura sua, e menos crueldade. Afinal, somos amantes contra ambas as nossas vontades, mas só eu sofro com este desamor torna-viagem.
C.P.T.; E.A.C.M.; A.A.; R.D.; R.M.; M.A.A.C.S.C.”

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