Sunday, September 26, 2010

Sabíeis?

Tinha a Sofia adormecida no meu regaço quando eles passaram diante de nós.

Praia ventosa, nós refugiados no último metro de areia, abrigados do vento, amparados pelo muro que separa o resto do mundo deste recinto de lazer estival, no estertor da estação.

E eles eram uma mulher pelos quarenta anos, acompanhada por uma criança crescida, teria e tem perto de doze anos. Ela de cabelo escuro, encaracolado, crespo, constrito por um bandó, ele sem nada mais distintivo do que ser roliço sem exagero, ambos de calças de ganga azul escura, camiseta branca sem estampas.

Reparei-lhe na mão, tentei contar, estimei que eram três ou quatro as rosas brancas que levava consigo a possível mãe nesse par de pessoas, de caules imensos, como todas as que se compram nas floristas, distingo-as sem custo, eu que durante alguns anos me dediquei às rosas (uma meia dúzia deles), nunca tal coisa consegui ajudar a terra a produzir.

Pararam pouco adiante, fiquei tão intrigado que não os larguei, conversaram por uns minutos, eu com olhos fixos neles, mesmo quando fingia algo diferente com o rosto mais voltado para baixo, pois a distância permitia-lhes perceber a minha fixação. Quando reparo, a possível mãe estava ajoelhada com as rosas diante dela, e, diante delas, a uns cinquenta metros, um mar irado em sintonia com a praia ventosa. Então, o corpo inventou uma nova posição, que era o meio caminho entre ajoelhada e deitada, certamente que prostrada era, parecia… um peixe; mesmo ao ondular-se para um lado e para o outro, reticente em abandonar a genuflexão e em ter-se esticada, reformulo: como uma sereia contorcendo-se. As mãos, como descrevê-las? Sabeis da posição mais usual quando se tem um telefone portátil e com ele nos debatemos para redigir uma mensagem? Essa mesma, mas retirai o telefone. Ela imprecava sem histeria contra as mãos, ou rosas, ou mar; lembrei-me tangencialmente daquele comportamento dos muçulmanos quando chega o minuto exacto de se virarem para Meca.

O miúdo mantinha-se silente a olhar com atenção para a areia que lhe circundava os pés. Suponho que o que lhe havia sido roubado pelo mar seria um irmão ou um pai. Só poderia supor, consternado, como me atreveria a questioná-los…?

O exercício atravessou uns minutos, entre as imprecações e interrogações das mãos, cria-a perturbada, poderia estar em copioso choro, a combinação de distância com a minha acuidade visual não me ajudou a perceber.

"O que é que aquela senhora está ali a fazer?", perguntou-me a Sara.

Acomodei a Sofia a meu lado, recebi a Sara na sua vez de ser embalada. O cenário intenso do meu flanco direito amenizou-se, estavam ambos de pé, dirigindo-se à água, pouco adiante deles, ao fundo de uma enseada enformada pela inclinação do areal. Não poderia haver dúvidas, aquele era o exacto sítio onde alguém lhes havia morrido. Avançando e retrocedendo para lidar com a ferocidade das ondas, a possível mãe calculava o momento preciso de arremessar ao mar assassino a dádiva da dor que ali veio cerimoniar. Tentativa atrás de insistente tentativa, as rosas regressavam na fímbria das ondas. Três rosas. Uma hipótese verosímil seria a de a data dramática ser esta: vinte e cinco de Setembro de dois mil e sete. E o carnífice monstro de água sempre recusando a homenagem e o luto, desprezando-os com uma indiferença sem arestas.

Sabíéis que o mar é assim tão fodido?

0 Comments:

Post a Comment

<< Home