Tuesday, May 09, 2006

Comissão 4.0

Simão Mil-Homens – Paulo, obrigado pela entrevista, e pela disponibilidade!
Paulo G. – Não tens de quê, acho muito bem escolhida a expressão “obrigado pela entrevista”, tendo sido eu quem te obrigou a entrevistar-me...
SMH – Por onde começamos?, pelos baptismos? Pelo teu? Porquê G., assim sem mais? O que pretendes ocultar? E o meu?, Simão Mil-Homens porquê?
PG – Estou à espera da oportunidade de desvelar o G., gostaria mesmo de ter sido descendente de Gauguin, achas que isto se encaixa nos ditos espirituosos e inteligentes, que se esperam ouvir de um autor? Vai-me avisando para me pôr em bicos de pés com frequência, e tentar impressionar quem nos lê, pode ser desarmante estar a admitir esta preocupação, mas temos mesmo de dar à audiência o que ela espera e pede de nós, mesmo se acabarmos sem armas.
SMH – Vou tentar. Algo mais sobre o G.?
PG – Sim. Admiro o homem mais rude da minha família, já falecido, um avô que tinha por apelido (materno) Gonzaga. Já o conheci depois de acalmar o seu “holocausto caseiro”, vergado à idade, irreconhecível face aos relatos violentíssimos sobre o seu carácter. Não quero julgá-lo, não devo, não posso; nascido antes da Primeira Guerra Mundial,

(repara na reverência, heim?, maiúsculas! Parece-me justo, nada mais merece tanto maiúsculas quanto uma guerra; uma guerra e esta minha afirmação tão absoluta)

socorro!, tinha dezoito irmãos, tudo acumulado em dois cómodos ou três: que refinamento ou maneiras, que educação poderia esperar-se em condições iguais? E isso reflectiu-se na educação do meu pai, e na minha, com toda a naturalidade. Por isso, aquele homem ainda mais pequeno do que eu, é para mim um homem enorme, aliás, sem tamanho. Um homem tenso, estanque à emoção mas capaz de levar aos braços o filho ardendo em febre até ao hospital mais próximo, algo como oito quilómetros, e ainda chegar com energia para se encolerizar por lhe estarem a pedir papéis e mais papéis, e que grau de rudeza tem afinal ele quando obriga as pessoas a tratarem imediatamente o filho?, e depois logo se trata dos papéis e cartões e carimbos e assinaturas? Isso é a única imortalidade que concebo, gerar mais vida, protegê-la com todo o instinto e toda a reflexão, assegurar a sobrevivência de quem carrega os nossos genes, assim viveremos mais, até de uma forma biológica, claro que não com o nosso próprio organismo.

(e aqui revelo gratuitamente os segredos da reencarnação, bem distante dos folclores e das fantasmagorias, mas a verdade é só esta)

Até este momento, o meu avô é imortal. E adoro repetir o nome, Gonzaga, especialmente pelo som “onza”, “onza”, “onza”, “on”, “za”. Já reparaste que se repetires continuamente a palavra quase, algum tempo depois não te parece já um palavra?, antes uma onomatopeia?, bem distante de uma palavra da nossa língua? Qualquer outra imortalidade é o imbecil desejo de uma ovação de todo o planeta a quem a deseja, ovação entusiasmada e contínua, espectadores aplaudindo em pé, o ser imortal repetindo pequenas vénias para os trezentos e sessenta graus – tridimensionais – de público, apontando o comando à distância para acelerar ou abrandar os movimentos, apontar para a fila dezoito e forçar uma histeria e gáudio que o seu poder permite


(sou um bicho caprichoso, detesto a fonte Times New Roman, o dactilógrafo que a altere já no final desta frase)

SMH – Desceste à imundície da vontade humana. Espero que tenhas mais para contar do que... escatologias intelectuais... este parece-me um bom momento para ensaiares algo cinematográfico para dizeres.
PG – Sim, estás certo. Aqui vai: sou um ser tão tenso, tão tenso, que se pressionares uma ervilha contra a minha pele e, se a largas, esborracha-se no tecto.
SMH – Parece-me importante dar-te aqui uma segunda oportunidade.
PG – Estou completamente alterado, e ainda não comecei a beber a sério.
SMH – Que alteração te interessa?, ou não tens escolha? Ou, antes, tens escolha?
PG – Fui mordido por um vampiro. Pelo vampiro da videira, pelo mau espírito que habita a vinha e na uva deixa o seu danoso valimento.
SMH – Não te esqueças, em bicos de pés, sobranceria intelectual, sê valente.
PG – Simão, vai ocupar-te dos cactos do Curdistão; a noite espera-me, vou-me desnaturar quando possa, completamente, desnaturadinho, aqui vou eu, tintinho! Sabes, Simão, eu olho agora para ti, e pareces-me um homem detector de mentiras, sentes-te bem nesse papel?, que mentiras detectas?
SMH – Até agora, a única mentira ou engano parece-me ser a tua inteligência, e estou bastante seguro do que escrevo...
PG – Vá, Simão, junta-te a esta desgraçada festa, de que careces para te entusiasmar, e para te libertares?
SMH – Quero protagonismo... maior do que o teu.
PG – Te-lo-ás. Imediatamente. Aqui o tens. Que falta há?
SMH – Faz-me perguntas, mas não me desrespeites.
PG – Nunca, nunca; o que te faz falta? Quais são os teus preconceitos?
SMH – Os maiores...? Os da linguagem.
PG – Ah!, sim? Explica-te!
SMH – Sem te ofender? Ou ofender o nossa audiência virtual? Se não, começo já, a lista é copiosa.
PG – Adiante, tens autonomia.
SMH – Tenho dois óbvios preconceitos, os das palavras e expressões que prefiro em excesso, e as outras que abomino em demasia.
PG – Exemplos, dás-mos?
SMH – Com certeza, sem certezas. Como se me dirigisse a uma audiência virtual: não se importam que me incline sobre o seio cheio da atraente mulher aqui sentada ao meu lado?, que o tome na boca e beije em círculos até completar de humedecer com os lábios todo o seu corpo agradável de formas, que belas formas!, lhe aspire e respire os odores da rotina, dos esforços, recolha e avalie as transpirações, que as adicione a esta lubricidade que estendo à sua agradabilíssima pele?
PG – Não.
SMH – Exactamente, à pergunta “não se importam”, a “audiência virtual” respondeu não; ou seja, importam-se, porque se tivessem repondido sim, significaria que não se importavam, foi essa a rigorosa pergunta: “não se importam?, a resposta é não, ou seja, importam-se judisciosamente, de contrário já me estaria despindo à procura da forma de fecundar esta bela fêmea.

(já o tenho tentado mentamente, sem resultado, creio que fisicamente terei alguma melhor probabilidade, mas não me atrevo, nunca, nunca me atrevo, nunca)

PG – Retira os teus dedos do cabelo dela. Já.
SMH – Não sei se sabes, mas eu sou quem comanda agora a entrevista.
PG – Como? Como te atreves? Eu não abdico da minha soberania!
SMH – Não sei se sabes, mas creio mesmo que não sabes mesmo, esta afirmação é a exibição despudorada daquilo que não sei. Melhor, daquilo que não sabemos.
Não sei se sabem que o azul é mesmo azul, não sei se sabem que um toiro não tem três cornos e é violentado com abusos extraterrestres; não se se sabem que o melhor chá vem do abrolhamento precoce das folhas da planta; não sei se sabem que o não saber se se sabe é um idiotismo circular para o qual não há saída; não sei se sabem que saber sobre o não saber se se sabe é completamente inútil. É um idiotismo de igual tamanho.
PG – Adiante, terei de voltar aqui para tentar entender-te.
SMH – Queres mais exemplos de linguagem oral que me ofendem mais do que o fígado?
PG – Estou por tudo, pareces estar entusiasmado, a precisar de expectorar uma quantidade brutal de exemplos...
SMH – Precisar de expectorar... se reflectisses um pouco mais, melhor forma encontrarias de te exprimir, sinto que não o procuras sequer.
PG – Adiante, meus deuses!, como queres que me expresse oralmente como se tivesse um discurso redigido e corrigido por uma equipa preocupada e antentíssima? Perco a espontaneidade.
SMH – Atentamente, frequentemente, oralmente, superfluidade adverbial, intensamente, definitivamente, positivamente, propriamente, soçobro, necessariamente, exactamente, novamente, absolutamente, particularmente, verbalmente, subsisto mas sem vontade, conaturalmente, completamente, adoravelmente, e o ominoso... efectivamente.
PG – Só mas minhas falas?
SMH – Apenas nos teus rascunhos para este texto, nas tuas falas até agora tens outras tantas insistências no advérbio fácil.
PG – Continua.
SMH – Esta expressão não é tua, descansa, mas faz parte do meu universo particular de preconceitos da língua, até porque os tenho ouvido repetidamente (também tenho direito a um advérbio, aqui e ali...); “em última análise” isto, em “última análise” aquilo, e parece que o raio da análise não chega ao fim, pelo menos à final ou à finalidade da análise não se chega.
PG – Creio que te arriscas, isso é obviamente a muleta mais resistente no discurso do Valter.
SMH – Não limites a tua percepção, além do Valter há muito mais oradores sujeitos a este artifício. E a muitos outros, muito mais feios: os que exprimindo-se no singular acrecentam “digamos” e “quer dizer”, ou o bem pior “quer-se dizer”, ou falam e escrevem em “termos” disto, em “termos” daquilo, tantos termos ou não termos; os que colocam o que dizem sempre no fundo: “no fundo” isto, “ no fundo” aquilo, tudo lá em baixo, no chão mais raso e pisado de todos; ou o anedótico “ao nível” disto, e “ao nível” – obviamente – daquilo, daqueloutro, cicrano, bletrano e gás propano, nivelado por alturas e intensidades obscuras, abstractas, como nos convém, para não termos de ser mais explícitos, de saber usar a linguagem para descrever o que pretendemos que os outros percebam, muito uso da nossa recorrente fé em que meia palavra (ou nem sequer tanto!,) basta, muita fé. Muita.
PG – Podemos prosseguir na entrevista?
SMH – Ainda não. “Mais ou menos”, outra agressão ao discurso; a “dada altura”, “determinadas e certas” situações, “determinados e certos” objectos, determinados, muito bem determinados!, certos, muito certos!, mas permanecem sempre por descobrir, talvez pela incapacidade de utilizar a linguagem. “Talvez” também é um dos horrores da mesma, “não-sei-o-quê” e “não-sei-que-mais” são mais duas expressões medonhas; “isto é assim” é a infantil incapacidade de começar uma frase..., indefinível, pior ainda: “isto é assim” é a derrocada de uma ideia ou intrução antes sequer de se tentar revelá-la. Mas, a pior de todas as aberrações, a mais mal-parecida e inconsequente e torpe e destemperada e vã e desassisada e ilógica e abstrusa e imprópria é... a “coisa”.
A “coisa” é a designação mais falta de lógica que serve para preencher o que não nos surge no discurso, é o substantivo que não se encontra, e que não se investiga, que não se deseja pois exige articulação, exige o favor constante, afinal, esvazia-se-lhe a substância, que arbitrariedade a nossa, roubamos o sentido ao que queremos exprimir, porque de tal não somos capazes.
PG – A “coisa” parece-me bem útil, pelo menos no entendimento jurídico.
SMH – E por aí se deveria quedar, imagina, por falta de destreza chegamos a trocar as ideias por coisas! Infelizes, nós.
PG – Podemos continuar?
SMH – Estamos a continuar, por que te parece que não continuamos? Até me interrompo por aqui, pois estes foram apenas os preconceitos, faltam ainda as discriminações positivas que tenho (temos) das palavras, os preconceitos coloridos, ainda me falta descrever-te o outro hemisfério da paleta.

Intervalo para pop melódica, intuitiva, que me congraça mais do que um beijo de um deus no intervalo dos cuidados mais do que indulgentes de um “spa”, mas haverá maior indulgência do que um beijo de um dos deuses? Como? Um tratamento num “spa”?

Snow Patrol – Chocolate;
Björk – All is Full of Love (all fucking stress or rudeness vanishes; I shut off the bloody monitor and bathe in sounds);
Sigur Ros – Njosnavelin (The Nothing Song?);
Sufjan Stevens – John Wayne Gacy, Jr. (damn, I’m singing for the ugly neighbours late night, an angel voice for a devilish biography, the outcome is incredible and of a painful sorcery, we will all die, putain!, tragedy!, we wil live on);
David Bowie – Moss Garden;
Elbow – Powder Blue + Red;
Placebo – Lady of The Flowers;
Bob Dylan – Bob Dylan’s Dream;
Mogwai – Helicon 1 (oh, for all fucks and all sakes, pieces of delicious heaven and delicious energetic hells fondle my skin, lips, ears, sex, and scattered spirit, this one is always away and unreachable);
Lift to Experience – To Guard and to Guide;
Fluke – Cosh (yes, Sirs, I do belong to a past dance era, Orbital’s The Box is an intriguing body motion track, I’m too sensitive to blips and bleeps);
Radiohead – Fake Plastic Trees (she looks like the real thing, she tastes like the real thing, my fake plastic love, I could mould you into a heart bypass);
Arab Strap – Tubulence 1;
The Smiths – Asleep;
Spiritualized – Broken heart.


PG – Ouves vozes?
SMH – Algumas, e tu? Achas que temos companhia?
PG – Acho. Como no teatro, as vozes dos actores, as dos espectadores, da orquestra quando a há, da equipa técnica quando a há, das pessoas rondando a porta digerindo a inveja de não terem bilhete, dos pedintes que as abordam quando se dirigem - vencidas – para casa, da família abraçada à televisão, dos vendedores às suas portas ao início da noite que tentam convencê-las da utilidade de uma colecção de plásticos, da família e amigos dos vendedores, dos credores dos vendedores, de todas as pessoas que os explusaram – a eles e aos plásticos – sem contemplações, e todos os fantasmas de todos os tempos que atormentam esta população que aqui tomou forma, todos juntos produzem uma quantidade de vozes constante, um ruído contumaz, mais caótico do que o da torre de babel higiénico, mas nunca ensurdecedor, não conseguiríamos ensandecer se surdos fossemos.
SMH – Se daqui a uma semana te entrevistar de novo, repetirás o mesmo que agora relatamos?
PG – Boa pergunta, mas a resposta não o será... o mais natural é não me lembrar mesmo do que disse hoje, não tenho o talento do Viegas, que nas entrevistas sobre o “Longe de Manaus” cedia sempre as mesmas respostas. Agora que me ponho a reparar, talvez lhe tivessem feito sempre as mesmas perguntas. Não consigo funcionar assim, não consigo responder duas vezes à mesma pergunta. Quero improvisar e, de preferência, contradizer-me. Por isso me calo quando me perguntam – “Então, está tudo bem?”, já não há mais respostas possíveis.
SMH – Qual a tua relação com a poesia?
PG – Fui obrigado a ouvir mais versos em umas semanas, do que em três décadas de vida, e ouvi a repetição de nomes, desta vez semeando-me a curiosidade de lhes ler a produção, a realização, a encenação
SMH – E qual a tua relação com a prosa?
PG – Imagina uma bactéria tentanto fabricar um míssil nuclear para fazer dano a este planeta, é esse o papel em que me sinto, perante a prosa.
SMH – O que gostarias de ter dito?
PG – Que andamos todas enganados sobre o amor verdadeiro. Não só quanto à repetição algo primata dos comportamentos sociais que se vão exagerando, mas especialmente porque acredito que grande parte do conceito de amor como o percebemos foi desenvolvido por autores homossexuais, que a Alta Autoridade Heterossexual nunca suspeitou terem essa origem, e tomou-a como modelo formidável do amor.
SMH – E há então dois tipos de amor?
PG – Não, claro que não. Quando muito, pequenas particularidades. Mas há que reconhecer a autoria deste nosso amor, rir abertamente do ridículo que é todas as colossais histórias de amor heterossexual se servirem das formas de amor homossexual. A liberdade sexual é ainda lucescente. E esperemos que assim continue por um bom tempo, antes que se degrade tanto e multiplique os desvios procedentes dos supostos comportamentos mais ordinários.
SMH – Bela ambiguidade. Faltou isto: porquê Simão Mil-Homens?
PG – Porque e mil homens há mais virtudes e vícios do que num só homem. Amanhã terias uma resposta diferente, hoje é mesmo esta.

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