Comissão 4.1 (to be continued...)
- Oh, perdição!, que preparos mais emudecedores!
- Obrigada, soa bem mais elogioso do que quando dizes que estou “vistosa” ou, mais infrequente, “aparatosa”!
- Doroteia, se arremesso uma saudação corrente, não sinto que tenha sido elegante.
- Fico sempre na dúvida. Entra, vens carregado!
- Trago delícias para nosso sustento.
- Vem, entra, adiante com a celebração. Trazes contigo todos os adubos!
- Sim, isto porque já recorro à experimentação em demasia, sem a minha colecção de condimentos seria o risco recto da calamidade.
- Que ajuda precisas?
- Que respostas não posso dar a essa pergunta?
- Nenhumas, isso mesmo, não há nenhuma resposta que não possas dar.
- Fica-me bem o avental, sinto-me feminino, apetece-me despir o resto da roupa, seria o mais aproximado a vestir um dos vossos vestidos levíssimos de Verão, desses que me distraem e traem a minha discrição.
- Posso comprazer-te, Paulo.
- Ainda bem que se libertam já os aromas dos temperos e ingredientes, a sós com o olor da tua carne vencer-me-ia a animalidade.
- É o único amor legítimo e honesto, o amor animal. Não quero para mim um amor burguês.
- Vê o que me aconteceu, casei com a mulher, com a sogra, sogro, cadela, com o bom e mau carácter da vizinhança, com as dívidas, com mobília de décadas... e, claro, contigo, querida cunhada.
- O único lucro do teu amor burguês.
- Tenho de baixar o fogo, em todas as acepções.
- Já reparaste, imagino, mas quero salientar, com alguma privação e exercício localizado, tenho agora o ventre lisinho, plano...
- É neste ponto da cocção que a carne começa a desprender os seus sucos mais preciosos, só falta mesmo revirar os elementos.
- O que tens aqui? Penfolds, Shiraz, Barrosa Valley vintage 2000, South Australia.
- Um sonho numa garrafa, abramo-la.
- Fruto preto maduro, groselhas, bagas silvestres, ginjas, ameixas, sinfonia de amoras, licor de cereja, compotas, denso, colosso de concentração, aromas tostados, especiarias, noz moscada, pimenta moída, resina, utuosidade da baunilha, borracha queimada, carvão, notas de grafite e aparas de lápis, tinta-da-china, glicerinado, madeira sedutora, estonteante, achocolatado, caramelo, café, potência e fulgor, virilidade e carácter, esmagador, exuberante, longo final. Rodopio.
- Tiraste-me as palavras do vinho. Não faz mal, eu tirei estas palavras do nosso último encontro:
“Tu sorriste, cúmplice, antes de eu agarrar a aldraba e puxar o portão. Tão grande e velho e nem rangeu.
E fugiram-me os olhos. À minha frente, à nossa frente, velho deus meu!, que sustive a respiração tanto tempo; tantas!, tanta cor!
As bancadas repletas de laranjas, de tangerinas, de tângeras, de toranjas, filas delas, derramadas, alinhadas, em cestos, nas mãos das gentes.
E aproximei-me, aproximámo-nos!, por entre todo aquele brilho alaranjado, até a fragância nos alcançar, até nos apoderarmos de todo e de cada particular odor citrino. E mais, queria então tocar, mas demorava-o para prolongar este arrebatamento, e adiar outro… E abaixei-me junto delas, grandes laranjas, inundadas de sol, maciças, à distância de um palmo. Toquei uma, agarrei-a com ambas mãos, fresca ela, febril eu, senti os poros da casca, senti-a tensa, pesada, plena de néctar. E a solícita vendedora, que a reclamou para si, desferindo-lhe um golpe meridiano. Logo ali se soltaram umas gotas do sumo sumo, umas disparadas radialmente, outras escorregando pela lâmina. Estendeu-me as duas metades, húmidas; agarrei-as e aproximei-as do rosto, para bater as pálpebras e inspirar todo o seu perfume, e beijei-as, beijei os gomos lacerados, brinquei com as pequenas fibras, e saboreei o fruto languidamente, até me aperceber que te havia desatendido.”
- Não gosto de laranjas, apontei; não me importei.
- É verdade, e como tenho o mau costume de reincidir, hoje teremos rodelas delas com cravinho...
- Também coloco reticências...
- Parte do agrado está na forma como rescendem, não te forçarei a mais do que esse prazer, e sempre regalas a vista, ou até a imagem te indispõe? Não consigo apertar o teu sutiã.
- Tens um arranjo para a cozinha, como direi?, rococó. Entusiasma-me com violência.
Dolores acha-se no pátio, ensaiando os prazeres da amargura, embora com todas as outras opções em aberto, com a expressão de quem acaba de decidir criar uma sociedade secreta, e para ela inventará as regras, um culto. Fazer pela vida. Em passos pendulares recolhe-se sob o tecto. Estantes acumuladas, é assim um lar: objectos e pessoas, as transcendências são fabulações; cerâmicas vulgares mas pretensiosas, lombadas de livros vaidosos, mais lombadas de mais livros de tamanhos avulsos, descompondo-se a cerimosiosa apresentação, velas, estátua (anã) de um santo, filmes, muitos deles, lista telefónica, chaves sem metáfora, meramente funcionais, telefones, espaço para a correspondência, espaço para a ausência. Estantes, mesas, cadeiras, quadros – todas as casas são iguais, repetitivas, porque iguais e repetitivas são as vontades e necessidades dos homens e das mulheres. É isto que se interpreta dos gestos de Dolores; se roda a cabeça com aquela cadência e cenho, lê-se perfeitamente que desdenha da colecção de castiçais de garrido artesanato. Na revista pareceu tão mais conforme...
Pedro soltou-se, anda por aí derivando. Soltou-se daquela maníaca Doroteia. Maníaca e ninfa, e também a inversão desta formas, que não é necessariamente um elogio, se afirmado por uma mulher e dedicado a outra. Impacientou-se com as suspeitas de indecoro, mesmo o homem com os interesses mais superiores não pode sustentar desconsiderações dessas.
Haverá um par de braços ancorando-o? Serei atraente em suficiência? Estarás na cidade?, e receptivo a convites? Onde tenho o teu número? Por que telefone a um homem, e não a uma mulher amiga? Que urgência não sei explicar se está manifestando? E mesmo para ela, não servirá uma amiga, uma boa amiga? É assim certo que para esta urgência de penosa confissão não serve uma mulher? Especialmente nesta circunstância? E quanto perco em não o verificar? Estarão as mucosas do Pedro neste momento esfregando-se em outras mais mimosas? Quem o terá cobiçado e capturado? Raios de arena de afectos sujeita a estas depredações.
(to be continued, or so I hope)
- Obrigada, soa bem mais elogioso do que quando dizes que estou “vistosa” ou, mais infrequente, “aparatosa”!
- Doroteia, se arremesso uma saudação corrente, não sinto que tenha sido elegante.
- Fico sempre na dúvida. Entra, vens carregado!
- Trago delícias para nosso sustento.
- Vem, entra, adiante com a celebração. Trazes contigo todos os adubos!
- Sim, isto porque já recorro à experimentação em demasia, sem a minha colecção de condimentos seria o risco recto da calamidade.
- Que ajuda precisas?
- Que respostas não posso dar a essa pergunta?
- Nenhumas, isso mesmo, não há nenhuma resposta que não possas dar.
- Fica-me bem o avental, sinto-me feminino, apetece-me despir o resto da roupa, seria o mais aproximado a vestir um dos vossos vestidos levíssimos de Verão, desses que me distraem e traem a minha discrição.
- Posso comprazer-te, Paulo.
- Ainda bem que se libertam já os aromas dos temperos e ingredientes, a sós com o olor da tua carne vencer-me-ia a animalidade.
- É o único amor legítimo e honesto, o amor animal. Não quero para mim um amor burguês.
- Vê o que me aconteceu, casei com a mulher, com a sogra, sogro, cadela, com o bom e mau carácter da vizinhança, com as dívidas, com mobília de décadas... e, claro, contigo, querida cunhada.
- O único lucro do teu amor burguês.
- Tenho de baixar o fogo, em todas as acepções.
- Já reparaste, imagino, mas quero salientar, com alguma privação e exercício localizado, tenho agora o ventre lisinho, plano...
- É neste ponto da cocção que a carne começa a desprender os seus sucos mais preciosos, só falta mesmo revirar os elementos.
- O que tens aqui? Penfolds, Shiraz, Barrosa Valley vintage 2000, South Australia.
- Um sonho numa garrafa, abramo-la.
- Fruto preto maduro, groselhas, bagas silvestres, ginjas, ameixas, sinfonia de amoras, licor de cereja, compotas, denso, colosso de concentração, aromas tostados, especiarias, noz moscada, pimenta moída, resina, utuosidade da baunilha, borracha queimada, carvão, notas de grafite e aparas de lápis, tinta-da-china, glicerinado, madeira sedutora, estonteante, achocolatado, caramelo, café, potência e fulgor, virilidade e carácter, esmagador, exuberante, longo final. Rodopio.
- Tiraste-me as palavras do vinho. Não faz mal, eu tirei estas palavras do nosso último encontro:
“Tu sorriste, cúmplice, antes de eu agarrar a aldraba e puxar o portão. Tão grande e velho e nem rangeu.
E fugiram-me os olhos. À minha frente, à nossa frente, velho deus meu!, que sustive a respiração tanto tempo; tantas!, tanta cor!
As bancadas repletas de laranjas, de tangerinas, de tângeras, de toranjas, filas delas, derramadas, alinhadas, em cestos, nas mãos das gentes.
E aproximei-me, aproximámo-nos!, por entre todo aquele brilho alaranjado, até a fragância nos alcançar, até nos apoderarmos de todo e de cada particular odor citrino. E mais, queria então tocar, mas demorava-o para prolongar este arrebatamento, e adiar outro… E abaixei-me junto delas, grandes laranjas, inundadas de sol, maciças, à distância de um palmo. Toquei uma, agarrei-a com ambas mãos, fresca ela, febril eu, senti os poros da casca, senti-a tensa, pesada, plena de néctar. E a solícita vendedora, que a reclamou para si, desferindo-lhe um golpe meridiano. Logo ali se soltaram umas gotas do sumo sumo, umas disparadas radialmente, outras escorregando pela lâmina. Estendeu-me as duas metades, húmidas; agarrei-as e aproximei-as do rosto, para bater as pálpebras e inspirar todo o seu perfume, e beijei-as, beijei os gomos lacerados, brinquei com as pequenas fibras, e saboreei o fruto languidamente, até me aperceber que te havia desatendido.”
- Não gosto de laranjas, apontei; não me importei.
- É verdade, e como tenho o mau costume de reincidir, hoje teremos rodelas delas com cravinho...
- Também coloco reticências...
- Parte do agrado está na forma como rescendem, não te forçarei a mais do que esse prazer, e sempre regalas a vista, ou até a imagem te indispõe? Não consigo apertar o teu sutiã.
- Tens um arranjo para a cozinha, como direi?, rococó. Entusiasma-me com violência.
Dolores acha-se no pátio, ensaiando os prazeres da amargura, embora com todas as outras opções em aberto, com a expressão de quem acaba de decidir criar uma sociedade secreta, e para ela inventará as regras, um culto. Fazer pela vida. Em passos pendulares recolhe-se sob o tecto. Estantes acumuladas, é assim um lar: objectos e pessoas, as transcendências são fabulações; cerâmicas vulgares mas pretensiosas, lombadas de livros vaidosos, mais lombadas de mais livros de tamanhos avulsos, descompondo-se a cerimosiosa apresentação, velas, estátua (anã) de um santo, filmes, muitos deles, lista telefónica, chaves sem metáfora, meramente funcionais, telefones, espaço para a correspondência, espaço para a ausência. Estantes, mesas, cadeiras, quadros – todas as casas são iguais, repetitivas, porque iguais e repetitivas são as vontades e necessidades dos homens e das mulheres. É isto que se interpreta dos gestos de Dolores; se roda a cabeça com aquela cadência e cenho, lê-se perfeitamente que desdenha da colecção de castiçais de garrido artesanato. Na revista pareceu tão mais conforme...
Pedro soltou-se, anda por aí derivando. Soltou-se daquela maníaca Doroteia. Maníaca e ninfa, e também a inversão desta formas, que não é necessariamente um elogio, se afirmado por uma mulher e dedicado a outra. Impacientou-se com as suspeitas de indecoro, mesmo o homem com os interesses mais superiores não pode sustentar desconsiderações dessas.
Haverá um par de braços ancorando-o? Serei atraente em suficiência? Estarás na cidade?, e receptivo a convites? Onde tenho o teu número? Por que telefone a um homem, e não a uma mulher amiga? Que urgência não sei explicar se está manifestando? E mesmo para ela, não servirá uma amiga, uma boa amiga? É assim certo que para esta urgência de penosa confissão não serve uma mulher? Especialmente nesta circunstância? E quanto perco em não o verificar? Estarão as mucosas do Pedro neste momento esfregando-se em outras mais mimosas? Quem o terá cobiçado e capturado? Raios de arena de afectos sujeita a estas depredações.
(to be continued, or so I hope)
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