Les Misérables
Victor Hugo era muito bom em desporto, exímio masturbador, bom em matemática. Terá ajudado a empregar-se num banco. Era baixo como eu, embora sendo mais esguio não se notasse tanto. Não tinha qualquer sotaque aqui da zona, havia nascido em África e de lá retornado para esta terra a norte, o pai era professor de alguma matéria que me escapa, creio até que noutra escola diferente da nossa, julgo que tenha ajudado a que o discurso dele soasse diferente, tão polido e melodioso, limpo, bem diferente da nossa fala afectada pela ruralidade. Na altura eu julgava-o mais alto, com as minhas origens, classe média era além da troposfera, que ferramentas tinha eu para medir estatutos? Ainda assim, classe média era um grande estatuto na cidade ali ao lado. Morar na zona mais nobre, numa vivenda, rodeada já de edifícios quatro vezes mais altos, penso, deveriam ser ajuda nessa coisa da condição social.
Lembro-me do dia em que os amigos mais chegados foram admitidos no antro íntimo.
Dia de praia, à boleia, toda a turma, peixe-aranha debaixo do pé, paulopontog toda a tarde encostado à toalha, sofrendo, queimando. Sorte a minha não ter sido exposta a minha incompetência enquanto jogador de voleibol. Cheguei rubro a casa, besuntei-me com o Caladryl da época, parecia o Rocky Balboa, pela posição de queimado de braços afastados do corpo, despido da cinta para cima, por ser então muito musculado, juro, dirigindo-me a uma sardinhada combinada.*
Encontrámo-nos em sua casa antes de sairmos, manhã cedo como se fôssemos para as aulas.
Ele era o pornágrafo mais desabrido, mais luxuriante, mais emocionável com a mulher e qualquer representação dela. Essa era uma afinidade forte que nos aproximava. Embora eu exuberasse muito, muito menos. Admito que ele chegava a ser eloquente no seu fascínio e deslumbramento pelos rabos-de-saia.
Fomos imediatamente convidados a apreciar a parte da pornografia que guardava na casa-de-banho. Pornografia muito avançada para miúdos de dezasseis anos (agora recordo, ele era um pouco mais velho). Daquele sítio da casa poderia ver a Sandra em ginásticas na garagem, conseguia masturbar-se dali a vê-la, já trocara uns beijos com ela, já lhe sentira totalmente os peitos exagerados de grandes (e, imagino eu agora, ainda longe da forma da maturidade). Pobre Victor Hugo, entusiasmado com todos esses relatos, com a boca cheia de pastilha elástica tentando impressionar-nos, até excitar-nos, eu tentando aquietar a aversão que ali se inaugurava quanto a beijos e a sobejos de saliva!
Isso foi há vinte anos atrás.
Há quinze anos atrás, num bar dos arredores da cidade aqui vizinha, onde eu me embriagava tranquilamente com regularidade, chegaram umas caras femininas infrequentes por ali. Surpresa, uma delas eu reconhecia, era a Cláudia, e deixou-me assombrado com a sua pele bonita, livre da acne desagradável e agreste que lhe ocupara anteriormente toda a cara, por isso ou acrescida a essa felicidade, estava elegante, adorável, uma tentação. Eu provocava-a quanto podia, enquanto colega de escola, mas nunca tinha sentido qualquer desejo por ela, era tudo inocente, ela reconhecia a minha atenção anterior, e notava que a minha atenção nesse reencontro era muito mais mal intencionada. Pensaria ela, com toda a naturalidade, ora, ora, mais um que agora até se deita e rebola se eu o ordenar.
Lembro-me do dia em que os amigos mais chegados foram admitidos no antro íntimo.
Dia de praia, à boleia, toda a turma, peixe-aranha debaixo do pé, paulopontog toda a tarde encostado à toalha, sofrendo, queimando. Sorte a minha não ter sido exposta a minha incompetência enquanto jogador de voleibol. Cheguei rubro a casa, besuntei-me com o Caladryl da época, parecia o Rocky Balboa, pela posição de queimado de braços afastados do corpo, despido da cinta para cima, por ser então muito musculado, juro, dirigindo-me a uma sardinhada combinada.*
Encontrámo-nos em sua casa antes de sairmos, manhã cedo como se fôssemos para as aulas.
Ele era o pornágrafo mais desabrido, mais luxuriante, mais emocionável com a mulher e qualquer representação dela. Essa era uma afinidade forte que nos aproximava. Embora eu exuberasse muito, muito menos. Admito que ele chegava a ser eloquente no seu fascínio e deslumbramento pelos rabos-de-saia.
Fomos imediatamente convidados a apreciar a parte da pornografia que guardava na casa-de-banho. Pornografia muito avançada para miúdos de dezasseis anos (agora recordo, ele era um pouco mais velho). Daquele sítio da casa poderia ver a Sandra em ginásticas na garagem, conseguia masturbar-se dali a vê-la, já trocara uns beijos com ela, já lhe sentira totalmente os peitos exagerados de grandes (e, imagino eu agora, ainda longe da forma da maturidade). Pobre Victor Hugo, entusiasmado com todos esses relatos, com a boca cheia de pastilha elástica tentando impressionar-nos, até excitar-nos, eu tentando aquietar a aversão que ali se inaugurava quanto a beijos e a sobejos de saliva!
Isso foi há vinte anos atrás.
Há quinze anos atrás, num bar dos arredores da cidade aqui vizinha, onde eu me embriagava tranquilamente com regularidade, chegaram umas caras femininas infrequentes por ali. Surpresa, uma delas eu reconhecia, era a Cláudia, e deixou-me assombrado com a sua pele bonita, livre da acne desagradável e agreste que lhe ocupara anteriormente toda a cara, por isso ou acrescida a essa felicidade, estava elegante, adorável, uma tentação. Eu provocava-a quanto podia, enquanto colega de escola, mas nunca tinha sentido qualquer desejo por ela, era tudo inocente, ela reconhecia a minha atenção anterior, e notava que a minha atenção nesse reencontro era muito mais mal intencionada. Pensaria ela, com toda a naturalidade, ora, ora, mais um que agora até se deita e rebola se eu o ordenar.
Que grande sorriso tinhas, Cláudia.
Foi pena não ter recebido qualquer juro merecido por te ter alegrado quando eras um patinho feio e roliço, em forma de alegria tua com o teu corpo tão prometedor. Lamento mas sobrevivo.
Com ela estavam raparigas que não eu conhecia mas não conseguiam deduzir qualquer quantidade do meu interesse pela magra Cláudia. Uma delas roubou-me com violência a atenção. Era a noiva, a presença delas ali era a despedida de solteira daquela rapariga baixinha, loira, com um ar bastante mais adulto. Sorri-lhe muito! Pois, então, que divertido! Despedida de solteira, que divertido! Eu sem ideias para desenvolver qualquer conversa, e também sem grande vontade em consegui-lo...
A noiva. A noiva do Victor Hugo. O meu espanto alterou-me.
Nessa mesma noite, mais tarde, na discoteca da cidade aqui ao lado, encontrei-o a ele, e confirmei tudo, nesse momento sem grande curiosidade minha, ele também não tendo trabalho em disfarçar o aborrecimento em abordar o assunto, apenas se arrebatando quando me perguntou:
- Trazes amigas?
Não sei o nome da noiva, sei isto: enquando concentrava nela o meu rosto e a minha necessidade de entender, fiz a pergunta errada, notando logo depois o que era demasiado evidente, o que só agravava a rudeza da minha pergunta.
“Noiva do Victor Hugo? Tu vais casar com o Victor Hugo? Não é possível, o Victor Hugo só estaria agora a casar-se se tivesse engravidado alguém, foi isso que te aconteceu?”
E sempre é assim narrado mesmo quando assim não é: o olhar dela disse tudo. Disse que eu era tão vulgar e bruto quanto todas as outras pessoas que lhe perguntaram o mesmo com a mesma incredulidade maldosa. Tão imbecil para também não reparar no evidente e ser um mínimo discreto quando à evidência. Tão repetidamente desagradável por estar a expor o erro dele, ou o erro dela, ou o disparate que é querer salientar um erro e moralizar a situação. Que horror para um moço da aldeia como eu, ela ia casar grávida, muito grávida! O horror do saloio, o horror...
A cara dela disse mais, talvez por ter seguido a minha cumplicidade singular com a Cláudia, disse que estava horrorizada pela boa impressão inicial, que eu ali acabara de arruinar com espalhafato.
Na altura, não percebi. Mesmo passados quinze anos receio não ter ainda percebido tudo.
É isso que me inquieta.
* O que eu implorei para me deixarem ir a um passeio escolar no dia seguinte, onde me esperava e encontraria com a Marta. A Marta era loira, vistosa, mostrava pouco das pernas, mas o que mostrava era apelativo. Não sei como é que aconteceu tal peripécia, sei que me caçou para uns beijos. Também só bastante tempo mais tarde percebi que a Marta, que eu julgava um pouquinho lenta e inexpressiva, era de facto uma mulher muito inteligente (essas coisas, todas as miúdas giras ou quase giras da cidade ali ao lado foram aprender medicina, o que é pelo menos um atestado que têm uma muito superior capacidade de estudo, maior do que a dos diletantes coleguinhas de turma ou escola) e manhosa, os beijos que me deu, a companhia, as combinações para jogarmos ténis, as mãos dadas e a cara sonsa eram ardis para provocar ciúmes ao namorado que lhe passara pela boca e peito e andara adiante, exactamente, sim, o Victor Hugo.
Não me deixaram ir. Pai, mãe... seus maus.
Com ela estavam raparigas que não eu conhecia mas não conseguiam deduzir qualquer quantidade do meu interesse pela magra Cláudia. Uma delas roubou-me com violência a atenção. Era a noiva, a presença delas ali era a despedida de solteira daquela rapariga baixinha, loira, com um ar bastante mais adulto. Sorri-lhe muito! Pois, então, que divertido! Despedida de solteira, que divertido! Eu sem ideias para desenvolver qualquer conversa, e também sem grande vontade em consegui-lo...
A noiva. A noiva do Victor Hugo. O meu espanto alterou-me.
Nessa mesma noite, mais tarde, na discoteca da cidade aqui ao lado, encontrei-o a ele, e confirmei tudo, nesse momento sem grande curiosidade minha, ele também não tendo trabalho em disfarçar o aborrecimento em abordar o assunto, apenas se arrebatando quando me perguntou:
- Trazes amigas?
Não sei o nome da noiva, sei isto: enquando concentrava nela o meu rosto e a minha necessidade de entender, fiz a pergunta errada, notando logo depois o que era demasiado evidente, o que só agravava a rudeza da minha pergunta.
“Noiva do Victor Hugo? Tu vais casar com o Victor Hugo? Não é possível, o Victor Hugo só estaria agora a casar-se se tivesse engravidado alguém, foi isso que te aconteceu?”
E sempre é assim narrado mesmo quando assim não é: o olhar dela disse tudo. Disse que eu era tão vulgar e bruto quanto todas as outras pessoas que lhe perguntaram o mesmo com a mesma incredulidade maldosa. Tão imbecil para também não reparar no evidente e ser um mínimo discreto quando à evidência. Tão repetidamente desagradável por estar a expor o erro dele, ou o erro dela, ou o disparate que é querer salientar um erro e moralizar a situação. Que horror para um moço da aldeia como eu, ela ia casar grávida, muito grávida! O horror do saloio, o horror...
A cara dela disse mais, talvez por ter seguido a minha cumplicidade singular com a Cláudia, disse que estava horrorizada pela boa impressão inicial, que eu ali acabara de arruinar com espalhafato.
Na altura, não percebi. Mesmo passados quinze anos receio não ter ainda percebido tudo.
É isso que me inquieta.
* O que eu implorei para me deixarem ir a um passeio escolar no dia seguinte, onde me esperava e encontraria com a Marta. A Marta era loira, vistosa, mostrava pouco das pernas, mas o que mostrava era apelativo. Não sei como é que aconteceu tal peripécia, sei que me caçou para uns beijos. Também só bastante tempo mais tarde percebi que a Marta, que eu julgava um pouquinho lenta e inexpressiva, era de facto uma mulher muito inteligente (essas coisas, todas as miúdas giras ou quase giras da cidade ali ao lado foram aprender medicina, o que é pelo menos um atestado que têm uma muito superior capacidade de estudo, maior do que a dos diletantes coleguinhas de turma ou escola) e manhosa, os beijos que me deu, a companhia, as combinações para jogarmos ténis, as mãos dadas e a cara sonsa eram ardis para provocar ciúmes ao namorado que lhe passara pela boca e peito e andara adiante, exactamente, sim, o Victor Hugo.
Não me deixaram ir. Pai, mãe... seus maus.