Wednesday, May 31, 2006

A mais salubre (e nobre) das aspirações ao Nobel

A man is driving down a country road, when he spots a farmer standing in the middle of a huge field of grass. He pulls the car over to the side of the road and notices that the farmer is just standing there, doing nothing, looking at nothing. The man gets out of the car, walks all the way out to the farmer and asks him, "Ah, excuse me mister, but what are you doing?" The farmer replies, "I'm trying to win a Nobel Prize." "How?" asks the man, puzzled. "Well, I heard they give the Nobel Prize . . . to people who are out standing in their field."

Friday, May 26, 2006

Fictosíntese

Gémeos morrem aos três meses, ambos.
Marido sai de casa com uma amante mantida há um ano.
Mulher vê salário ser fatiado na fonte para saldar dívidas do marido.

Agita-se num recipente próprio, deixa-se repousar (dois anos).

Estão juntos de novo (o original marido com a original mulher, interpretem "original" como preferirem).

Ainda se idolatra a ficção como a melhor origem de surpresa, invenção original, intriga complexa e emocionante.

Encontro na realidade uma droga bem mais poderosa.

Se esta noite tiveres sonhos eróticos, convida-me para contigo neles entrar

Depois de um título assim, só posso ficar mudo (e rezar).

Monday, May 22, 2006

Estava a faltar-me o incentivo

“É preciso estar sempre embriagado. Para não sentirem o fardo incrível do tempo, que verga e inclina a terra, é preciso embriagarem-se sem descanso. Com quê? Com vinho, poesia e virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.” – Baudelaire.

ENIVREZ-VOUS
Il faut être toujours ivre, tout est là ; c'est l'unique question. Pour ne pas sentir l'horrible fardeau du temps qui brise vos épaules etvous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu à votre guise, mais enivrez-vous!Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte d'un fossé, vous vous réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge; à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est. Et le vent, la vague, l'étoile, l'oiseau, l'horloge, vous répondront, il est l'heure de s'enivrer ;pour ne pas être les esclaves martyrisés du temps, enivrez-vous, enivrez-vous sans cesse de vin, de poésie, de vertu, à votre guise.

Friday, May 19, 2006

Frente a frente com a mulher mais atraente do Minho

Aconteceu hoje.

Não sei mesmo o que dizer, ainda estou a sossegar os sentidos.

Se tivesse tentado tocar-lhe, beijá-la, teria eu sobrevivido?

Sobrevivido à provável defesa dela?

Sobrevivido à inevitável privação em que estaria agora?

Estou vivo, é a maior prova da minha covardia.

Sorte.

O meu amor é mais impossível do que o teu

O argumento original do Brokeback Mountain

Tuesday, May 16, 2006

Amor a esta cor




Amor a esta cor

















Lithops

Amor a esta cor

She is (was) gorgeous

Ensaio n.º 1

A mão que suporta o microfone é, sem dúvida possível, a de uma mulher.
Proponho: Yassin tem aquele olhar enternecido porque desceu no abismo do decote da senhora.
Consideração científica: a direcção do olhar, calculando a que distância estará o peito (antes, a janela para os peitos), parece não coincidir com ele.
Consideração mais científica ainda: repare-se onde está a mão esquerda (a impura) do xeque.
Parece um fraco silogismo, mas acompanhem-me, preciso de companhia, e preciso de vos convencer.
(Acredito que a palavra parapeito teve uma origem específica.)
Perante um superabundante peito, que apenas muros e contrafortes conseguem suster, onde podemos imaginar a orla do decote? Exactamente, em latitudes e longitudes improváveis.

Que não se pense, ora essa!, que são autoria minha estas dissoluções, está tudo no rosto de Yassin, e grande atenção é prescindível, perante a leitura evidente.

Xeque em branco

Sheikh Ahmed Ismail Yassin

(um dos fundadores do Hamas)

Repare-se no olhar fixo (imagino) na gravata do entrevistador.

Sugestão para um ensaio: que raio viu o defunto xeque na gravata do entrevistador?

Sunday, May 14, 2006

Amor a mais

Desci uma lâmina de fio ofuscante de alto a baixo, desabaram-me os órgãos, derramou-se quase todo o sangue. Apanhei um tanto de uns e um tanto do outro, moldei-os como pude numa das metades. Deixei a outra metade e os restos para trás. Havia em mim amor a mais.
Carlos Silva e Silva, um homem não é homem se não tiver dois apelidos.
Carlos Silva e Silva da Silva, então com três... é um atestado de virilidade, cosmopolitismo, superioridade moral, estatuto invejável, tudo isto sem ter se abrir a boca ou tirar as mãos dos bolsos.
Não há espaço aqui para conter todos os G's suficientes para me recuperar alguma dignidade.
(isto porque sou tonto, bastar-me-iam uns dois ou três Silva...)

Amor à língua

Questão, ai!, nuas.



Como criar um nome bíblico:
- Estas trutas são mesmo, mesmo frescas?
- São, são.

Friday, May 12, 2006

Amor à lingua (risco muito grave de autofagia)

Sedução.

A palavra mais deliciosa quando ciciada, deslumbra-me e não me arrependo da frivolidade em adorar-lhe mais a forma do que o conteúdo.

Amor à língua (risco grave de autofagia)

Prosopopeia.


(vou massacrar o Registo Civil, quero assim baptizar uma filha)

Thursday, May 11, 2006

Reverência para com esta minha língua

Casino à frente de todos, e não me depilei.

Reverência para com esta minha língua

Iraque luz de baixo.

Reverência para com esta minha língua

Ubíquo do corvo.

O romance perfeito

Tem que ter bom sexo, ser excitante e perigoso.
(heard earlier today from someone close)

Hesitei se acrescentaria ou não que estes atributos são desejáveis no romance enquanto relacionamento; remirando agora no que resultou o título e a primeira frase, parece-me até mais conforme se não conduzisse a interpretação para o domínio dos afectos.

É melhor manter-me nesta fronteira incerta, pois não tenho qualquer autoridade para qualquer das acepções de romance.
Lamento, mas não.

Congratulação!

Faz hoje um ano.
Um ano completo, o primeiro aniversário.
Onze de Maio de dois mil e cinco.
Achei justo comemorar um dia sem história (para mim, que me recorde, mas tenho que deixar escrito que não tenho uma memória notável). Todos os dias o merecem, até unidades de medição de tempo menores; júbilo para mim seria celebrar cada fracção de segundo a cada fracção de segundo seguinte, mesmo que nenhuma glória se pudesse associar a qualquer partícula de tempo.
Agora que me permito alguma contemplação (em inglês: musing, palavra adorável, dá vontade de fazer amor com ela, perdão, tonto maneirismo de linguagem, dá vontade de copular com a palavra; ou será que consigo convencer alguém a adoptar a expressão "fazer ódio" para a circunstância de uma sova?) da ideia, parece-me o caminho mais curto para alguém ficar completamente sandeu.

Até para o ano, onze de Maio.

Tuesday, May 09, 2006

Fecundação

Uma boa constritora.
Não há abraço igual. Final. O último, sem auxílio.
Cobiço-te o corpo, e o que com ele conseguirás fazer (comigo, espero).
Enquanto me desenrolo e enrolo à tua volta, asperges feromonas, que me açoitam a anca, e relembram que não sou o réptil sensual que te fascinou, subornou a tua orientação, atraiu para diante de mim, agora suspensa e aqui, com o teu vácuo interior suspenso e exposto, rogando que o invada, mais vezes, que o farte, que o fecunde. Que o farte de novo mais tarde. Que o farte novamente.
No teu vácuo, ficou o meu conteúdo.
Uma estafeta; aí tens o testemunho. O melhor de mim (sim?). Mesmo que não derramado todo na tua noite orgânica, repartindo as minhas secreções e atenções também (com e) sobre a tua superfície.
Se te deixas adormecer, cuida bem, expões-te ao meu abraço predador(*).
Tenho fomes.
Fomes.
Muitas fomes.
Vou "predar"(*).

(*) - viva o verbo!

A dor (uma dor) não tem sepulcro

Nuno:

Está toda a gente zangada contigo porque partiste sem te despedir de ninguém. Está toda a gente triste. Até eu, que não te conhecia bem, nem era teu amigo íntimo, ainda por cima achava piada ao teu jeito desajeitado e distraído.
Tiveste um funeral triste, muita gente triste, muitas lágrimas insustentáveis, muitos nós na garganta. Eras novo, muito novo. Tiveste uma morte violenta, com isso melindraste as pessoas. Tinhas muitos amigos, ou simplesmente conhecidos, e acredito que sejas a única pessoa nesta zona que não coleccionava ódios, acredito que foste a única pessoa (pelo menos do meu conhecimento) a não suscitar inimizades de alguém. Mais ainda, a tua morte juntou na dor muitos ódios cruzados, e a tua campa foi o campo neutro para todos chorarem por ti. E deixaste só uma rapariga bonita, que partilhou contigo quatro anos, que já começou a sofrer um calvário, sem ti. E os teus pais, os teus irmãos, primos... toda a dor junta dessas pessoas, tanta...
Não posso deixar de pensar, se toda a gente ali reunida, se cada um morresse um bocadinho para, em troca, tu voltares à vida, se cada um estivesse disposto a tal... mas não. Já estavas morto e isso conforta as pessoas, porque estão vivas e alguém tem de morrer, estávamos todos confortáveis e não queríamos arriscar um milímetro que fosse, seria uma prova de amor suprema, e nós somos egoístas ao ponto de tornar isso impossível. Creio que nem Cristo voltaria a morrer um bocadinho para te dar a vida. Assim é.
No fundo nem estamos interessados, sabemos que te vamos lembrar até parecer - a tua morte - natural. Levámos o nosso cinismo à comoção. No fundo não queremos fazer nada por ti, mesmo omitindo se podemos ou não, é-nos tão fácil chorar e angustiar. Nada te pode trazer de volta, nada, ninguém, nem o esforço de mil milhões de pessoas. Porque, além de não conseguirmos, não queremos. Já te escrevemos o princípio e o fim. És um mártir silencioso, já és passado. E as lágrimas que tanto nos custam, que estão na medida directa do nosso sofrimento, são elas que vão começar a lavar-te das nossas lembranças, até ser esporádica a recordação; a efeméride do teu nascimento, da tua morte, e pouco mais. Foste e és um dos sacrificados para que nós continuemos atentos à nossa fragilidade, à vida e ao egocentrismo. Quem não pensou: “poderia ter sido eu, ou alguém que muito prezo”, e ficou aliviado ter escapado mais uma vez à implacável lâmina da morte. Espero que estejas feliz desse lado, e que desculpes as idiotices que vês serem feitas neste. Até algum dia.

Comissão 5.0

Meus queridos, preciso da ajuda de todos. Pousem os vossos ponteiros de plumbagina, quem não gostar da forma como isto soa, pode sempre usar a palavra lápis. Ao trabalho!
Guida, Guidinha, recorta um morango em forma de coração – grande, muito grande –, é a nossa figura central. Pedro, precisamos de uma papoula azul para pousar sobre ele, contorcida, um azul um pouco mais escuro do que os olhinhos do João. Por falar em ti, João, precisamos de um fundo encarnado, um bom vermelho, um vermelho decente. Uma cartolina é insuficiente, quero um painel rectangular de dois metros por um metro e meio. Sara, Bárbara, Ana, Pedro, teremos mais quatro corações, um pouco menores e dispostos dois de cada lado, cada um deles ao cuidado de cada um de vós: para o mais à esquerda quero serapilheira recortada numa figura cordiforme, com uma fita amarelada (gema de ovo, açafrão, polpa de manga, periquito australiano, peixe de aquário, borboleta exótica, cogumelo venenoso, fungos felizes, coral bem-disposto), repercutindo os contornos até ao centro, dispersaremos nele quatro narcisos; o seguinte, logo à direita, acompanhas-me?, Lúcia, querida?, perdeste o elástico do cabelo?, vá, procuras depois, encontra e recorta agora um plástico preto, vais percorrê-lo sem nexo com um fio de borracha, de um tom encarnado afim à tela; adiante do coração nuclear (sosseguem as meninas, não inventaram ainda um à prova de desgostos... ainda, ainda bem), logo à direita sem volver, recortarás uma porção de vinil, mais um objecto cardíaco, ligado por um cordel azul-cobalto, e monta nele uns quantos chupa-chupas rubros, que sabor preferes?, cereja?; no último, Pedro, enformas toscamente um pedaço de tecido felpudo, busca algo de algodão, ou terás de sacrificar uma mais custosa peça de roupa em lã, amarelo (mas não tão exagerado quanto o amarelo da fita de há pouco, não faremos a mesma fita), atado em quatro, com uns farrapos escarlate, oh!, acabada arte!, e uma gaze azulada.
Quantos e quão diversos teríamos de conceber para exibir toda a variação de estados e emoções por que obrigamos os corações a responder?
Justino!, que parado estás!, príncipe da mândria, chega de folguedos, vem trabalhar! Precisamos agora de catorze desenhos, vamos invadir os espaços sobrantes; aqui o nosso amiguinho Justino tem carestia de expressar o seu tão lento talento, fazes oito desenhos; Guida, Pedro, João, Sara, Bárbara, Ana, um para cada um de vós. O motivo dos desenhos? Bonecos espantados e felizes, bonecos coloridos lançando pérolas e ovas de rã para os corações!, bonecos garridos, capturados em gestos de dádiva, pérolas, pérolas, ovas, ovas!, cada um deles recluso numa célula informe: quero para elas mais amarelo tóxico, verdes sobrenaturais, azuis cândidos, pérolas e ovas ora alvacentas ora ofuscantes. O bom ou mau resultado deste trabalho depende da generosidade que consigais transmitir a essas personagens ternurentas.
No final, não vos esqueçais: deixai sobre na minha secretária as alterações que pedi às vossas dissertações de mestrado.

Comissão 4.1 (to be continued...)

- Oh, perdição!, que preparos mais emudecedores!
- Obrigada, soa bem mais elogioso do que quando dizes que estou “vistosa” ou, mais infrequente, “aparatosa”!
- Doroteia, se arremesso uma saudação corrente, não sinto que tenha sido elegante.
- Fico sempre na dúvida. Entra, vens carregado!
- Trago delícias para nosso sustento.
- Vem, entra, adiante com a celebração. Trazes contigo todos os adubos!
- Sim, isto porque já recorro à experimentação em demasia, sem a minha colecção de condimentos seria o risco recto da calamidade.
- Que ajuda precisas?
- Que respostas não posso dar a essa pergunta?
- Nenhumas, isso mesmo, não há nenhuma resposta que não possas dar.
- Fica-me bem o avental, sinto-me feminino, apetece-me despir o resto da roupa, seria o mais aproximado a vestir um dos vossos vestidos levíssimos de Verão, desses que me distraem e traem a minha discrição.
- Posso comprazer-te, Paulo.
- Ainda bem que se libertam já os aromas dos temperos e ingredientes, a sós com o olor da tua carne vencer-me-ia a animalidade.
- É o único amor legítimo e honesto, o amor animal. Não quero para mim um amor burguês.
- Vê o que me aconteceu, casei com a mulher, com a sogra, sogro, cadela, com o bom e mau carácter da vizinhança, com as dívidas, com mobília de décadas... e, claro, contigo, querida cunhada.
- O único lucro do teu amor burguês.
- Tenho de baixar o fogo, em todas as acepções.
- Já reparaste, imagino, mas quero salientar, com alguma privação e exercício localizado, tenho agora o ventre lisinho, plano...
- É neste ponto da cocção que a carne começa a desprender os seus sucos mais preciosos, só falta mesmo revirar os elementos.
- O que tens aqui? Penfolds, Shiraz, Barrosa Valley vintage 2000, South Australia.
- Um sonho numa garrafa, abramo-la.
- Fruto preto maduro, groselhas, bagas silvestres, ginjas, ameixas, sinfonia de amoras, licor de cereja, compotas, denso, colosso de concentração, aromas tostados, especiarias, noz moscada, pimenta moída, resina, utuosidade da baunilha, borracha queimada, carvão, notas de grafite e aparas de lápis, tinta-da-china, glicerinado, madeira sedutora, estonteante, achocolatado, caramelo, café, potência e fulgor, virilidade e carácter, esmagador, exuberante, longo final. Rodopio.
- Tiraste-me as palavras do vinho. Não faz mal, eu tirei estas palavras do nosso último encontro:

“Tu sorriste, cúmplice, antes de eu agarrar a aldraba e puxar o portão. Tão grande e velho e nem rangeu.
E fugiram-me os olhos. À minha frente, à nossa frente, velho deus meu!, que sustive a respiração tanto tempo; tantas!, tanta cor!
As bancadas repletas de laranjas, de tangerinas, de tângeras, de toranjas, filas delas, derramadas, alinhadas, em cestos, nas mãos das gentes.
E aproximei-me, aproximámo-nos!, por entre todo aquele brilho alaranjado, até a fragância nos alcançar, até nos apoderarmos de todo e de cada particular odor citrino. E mais, queria então tocar, mas demorava-o para prolongar este arrebatamento, e adiar outro… E abaixei-me junto delas, grandes laranjas, inundadas de sol, maciças, à distância de um palmo. Toquei uma, agarrei-a com ambas mãos, fresca ela, febril eu, senti os poros da casca, senti-a tensa, pesada, plena de néctar. E a solícita vendedora, que a reclamou para si, desferindo-lhe um golpe meridiano. Logo ali se soltaram umas gotas do sumo sumo, umas disparadas radialmente, outras escorregando pela lâmina. Estendeu-me as duas metades, húmidas; agarrei-as e aproximei-as do rosto, para bater as pálpebras e inspirar todo o seu perfume, e beijei-as, beijei os gomos lacerados, brinquei com as pequenas fibras, e saboreei o fruto languidamente, até me aperceber que te havia desatendido.”

- Não gosto de laranjas, apontei; não me importei.
- É verdade, e como tenho o mau costume de reincidir, hoje teremos rodelas delas com cravinho...
- Também coloco reticências...
- Parte do agrado está na forma como rescendem, não te forçarei a mais do que esse prazer, e sempre regalas a vista, ou até a imagem te indispõe? Não consigo apertar o teu sutiã.
- Tens um arranjo para a cozinha, como direi?, rococó. Entusiasma-me com violência.

Dolores acha-se no pátio, ensaiando os prazeres da amargura, embora com todas as outras opções em aberto, com a expressão de quem acaba de decidir criar uma sociedade secreta, e para ela inventará as regras, um culto. Fazer pela vida. Em passos pendulares recolhe-se sob o tecto. Estantes acumuladas, é assim um lar: objectos e pessoas, as transcendências são fabulações; cerâmicas vulgares mas pretensiosas, lombadas de livros vaidosos, mais lombadas de mais livros de tamanhos avulsos, descompondo-se a cerimosiosa apresentação, velas, estátua (anã) de um santo, filmes, muitos deles, lista telefónica, chaves sem metáfora, meramente funcionais, telefones, espaço para a correspondência, espaço para a ausência. Estantes, mesas, cadeiras, quadros – todas as casas são iguais, repetitivas, porque iguais e repetitivas são as vontades e necessidades dos homens e das mulheres. É isto que se interpreta dos gestos de Dolores; se roda a cabeça com aquela cadência e cenho, lê-se perfeitamente que desdenha da colecção de castiçais de garrido artesanato. Na revista pareceu tão mais conforme...

Pedro soltou-se, anda por aí derivando. Soltou-se daquela maníaca Doroteia. Maníaca e ninfa, e também a inversão desta formas, que não é necessariamente um elogio, se afirmado por uma mulher e dedicado a outra. Impacientou-se com as suspeitas de indecoro, mesmo o homem com os interesses mais superiores não pode sustentar desconsiderações dessas.
Haverá um par de braços ancorando-o? Serei atraente em suficiência? Estarás na cidade?, e receptivo a convites? Onde tenho o teu número? Por que telefone a um homem, e não a uma mulher amiga? Que urgência não sei explicar se está manifestando? E mesmo para ela, não servirá uma amiga, uma boa amiga? É assim certo que para esta urgência de penosa confissão não serve uma mulher? Especialmente nesta circunstância? E quanto perco em não o verificar? Estarão as mucosas do Pedro neste momento esfregando-se em outras mais mimosas? Quem o terá cobiçado e capturado? Raios de arena de afectos sujeita a estas depredações.

(to be continued, or so I hope)

Comissão 4.0

Simão Mil-Homens – Paulo, obrigado pela entrevista, e pela disponibilidade!
Paulo G. – Não tens de quê, acho muito bem escolhida a expressão “obrigado pela entrevista”, tendo sido eu quem te obrigou a entrevistar-me...
SMH – Por onde começamos?, pelos baptismos? Pelo teu? Porquê G., assim sem mais? O que pretendes ocultar? E o meu?, Simão Mil-Homens porquê?
PG – Estou à espera da oportunidade de desvelar o G., gostaria mesmo de ter sido descendente de Gauguin, achas que isto se encaixa nos ditos espirituosos e inteligentes, que se esperam ouvir de um autor? Vai-me avisando para me pôr em bicos de pés com frequência, e tentar impressionar quem nos lê, pode ser desarmante estar a admitir esta preocupação, mas temos mesmo de dar à audiência o que ela espera e pede de nós, mesmo se acabarmos sem armas.
SMH – Vou tentar. Algo mais sobre o G.?
PG – Sim. Admiro o homem mais rude da minha família, já falecido, um avô que tinha por apelido (materno) Gonzaga. Já o conheci depois de acalmar o seu “holocausto caseiro”, vergado à idade, irreconhecível face aos relatos violentíssimos sobre o seu carácter. Não quero julgá-lo, não devo, não posso; nascido antes da Primeira Guerra Mundial,

(repara na reverência, heim?, maiúsculas! Parece-me justo, nada mais merece tanto maiúsculas quanto uma guerra; uma guerra e esta minha afirmação tão absoluta)

socorro!, tinha dezoito irmãos, tudo acumulado em dois cómodos ou três: que refinamento ou maneiras, que educação poderia esperar-se em condições iguais? E isso reflectiu-se na educação do meu pai, e na minha, com toda a naturalidade. Por isso, aquele homem ainda mais pequeno do que eu, é para mim um homem enorme, aliás, sem tamanho. Um homem tenso, estanque à emoção mas capaz de levar aos braços o filho ardendo em febre até ao hospital mais próximo, algo como oito quilómetros, e ainda chegar com energia para se encolerizar por lhe estarem a pedir papéis e mais papéis, e que grau de rudeza tem afinal ele quando obriga as pessoas a tratarem imediatamente o filho?, e depois logo se trata dos papéis e cartões e carimbos e assinaturas? Isso é a única imortalidade que concebo, gerar mais vida, protegê-la com todo o instinto e toda a reflexão, assegurar a sobrevivência de quem carrega os nossos genes, assim viveremos mais, até de uma forma biológica, claro que não com o nosso próprio organismo.

(e aqui revelo gratuitamente os segredos da reencarnação, bem distante dos folclores e das fantasmagorias, mas a verdade é só esta)

Até este momento, o meu avô é imortal. E adoro repetir o nome, Gonzaga, especialmente pelo som “onza”, “onza”, “onza”, “on”, “za”. Já reparaste que se repetires continuamente a palavra quase, algum tempo depois não te parece já um palavra?, antes uma onomatopeia?, bem distante de uma palavra da nossa língua? Qualquer outra imortalidade é o imbecil desejo de uma ovação de todo o planeta a quem a deseja, ovação entusiasmada e contínua, espectadores aplaudindo em pé, o ser imortal repetindo pequenas vénias para os trezentos e sessenta graus – tridimensionais – de público, apontando o comando à distância para acelerar ou abrandar os movimentos, apontar para a fila dezoito e forçar uma histeria e gáudio que o seu poder permite


(sou um bicho caprichoso, detesto a fonte Times New Roman, o dactilógrafo que a altere já no final desta frase)

SMH – Desceste à imundície da vontade humana. Espero que tenhas mais para contar do que... escatologias intelectuais... este parece-me um bom momento para ensaiares algo cinematográfico para dizeres.
PG – Sim, estás certo. Aqui vai: sou um ser tão tenso, tão tenso, que se pressionares uma ervilha contra a minha pele e, se a largas, esborracha-se no tecto.
SMH – Parece-me importante dar-te aqui uma segunda oportunidade.
PG – Estou completamente alterado, e ainda não comecei a beber a sério.
SMH – Que alteração te interessa?, ou não tens escolha? Ou, antes, tens escolha?
PG – Fui mordido por um vampiro. Pelo vampiro da videira, pelo mau espírito que habita a vinha e na uva deixa o seu danoso valimento.
SMH – Não te esqueças, em bicos de pés, sobranceria intelectual, sê valente.
PG – Simão, vai ocupar-te dos cactos do Curdistão; a noite espera-me, vou-me desnaturar quando possa, completamente, desnaturadinho, aqui vou eu, tintinho! Sabes, Simão, eu olho agora para ti, e pareces-me um homem detector de mentiras, sentes-te bem nesse papel?, que mentiras detectas?
SMH – Até agora, a única mentira ou engano parece-me ser a tua inteligência, e estou bastante seguro do que escrevo...
PG – Vá, Simão, junta-te a esta desgraçada festa, de que careces para te entusiasmar, e para te libertares?
SMH – Quero protagonismo... maior do que o teu.
PG – Te-lo-ás. Imediatamente. Aqui o tens. Que falta há?
SMH – Faz-me perguntas, mas não me desrespeites.
PG – Nunca, nunca; o que te faz falta? Quais são os teus preconceitos?
SMH – Os maiores...? Os da linguagem.
PG – Ah!, sim? Explica-te!
SMH – Sem te ofender? Ou ofender o nossa audiência virtual? Se não, começo já, a lista é copiosa.
PG – Adiante, tens autonomia.
SMH – Tenho dois óbvios preconceitos, os das palavras e expressões que prefiro em excesso, e as outras que abomino em demasia.
PG – Exemplos, dás-mos?
SMH – Com certeza, sem certezas. Como se me dirigisse a uma audiência virtual: não se importam que me incline sobre o seio cheio da atraente mulher aqui sentada ao meu lado?, que o tome na boca e beije em círculos até completar de humedecer com os lábios todo o seu corpo agradável de formas, que belas formas!, lhe aspire e respire os odores da rotina, dos esforços, recolha e avalie as transpirações, que as adicione a esta lubricidade que estendo à sua agradabilíssima pele?
PG – Não.
SMH – Exactamente, à pergunta “não se importam”, a “audiência virtual” respondeu não; ou seja, importam-se, porque se tivessem repondido sim, significaria que não se importavam, foi essa a rigorosa pergunta: “não se importam?, a resposta é não, ou seja, importam-se judisciosamente, de contrário já me estaria despindo à procura da forma de fecundar esta bela fêmea.

(já o tenho tentado mentamente, sem resultado, creio que fisicamente terei alguma melhor probabilidade, mas não me atrevo, nunca, nunca me atrevo, nunca)

PG – Retira os teus dedos do cabelo dela. Já.
SMH – Não sei se sabes, mas eu sou quem comanda agora a entrevista.
PG – Como? Como te atreves? Eu não abdico da minha soberania!
SMH – Não sei se sabes, mas creio mesmo que não sabes mesmo, esta afirmação é a exibição despudorada daquilo que não sei. Melhor, daquilo que não sabemos.
Não sei se sabem que o azul é mesmo azul, não sei se sabem que um toiro não tem três cornos e é violentado com abusos extraterrestres; não se se sabem que o melhor chá vem do abrolhamento precoce das folhas da planta; não sei se sabem que o não saber se se sabe é um idiotismo circular para o qual não há saída; não sei se sabem que saber sobre o não saber se se sabe é completamente inútil. É um idiotismo de igual tamanho.
PG – Adiante, terei de voltar aqui para tentar entender-te.
SMH – Queres mais exemplos de linguagem oral que me ofendem mais do que o fígado?
PG – Estou por tudo, pareces estar entusiasmado, a precisar de expectorar uma quantidade brutal de exemplos...
SMH – Precisar de expectorar... se reflectisses um pouco mais, melhor forma encontrarias de te exprimir, sinto que não o procuras sequer.
PG – Adiante, meus deuses!, como queres que me expresse oralmente como se tivesse um discurso redigido e corrigido por uma equipa preocupada e antentíssima? Perco a espontaneidade.
SMH – Atentamente, frequentemente, oralmente, superfluidade adverbial, intensamente, definitivamente, positivamente, propriamente, soçobro, necessariamente, exactamente, novamente, absolutamente, particularmente, verbalmente, subsisto mas sem vontade, conaturalmente, completamente, adoravelmente, e o ominoso... efectivamente.
PG – Só mas minhas falas?
SMH – Apenas nos teus rascunhos para este texto, nas tuas falas até agora tens outras tantas insistências no advérbio fácil.
PG – Continua.
SMH – Esta expressão não é tua, descansa, mas faz parte do meu universo particular de preconceitos da língua, até porque os tenho ouvido repetidamente (também tenho direito a um advérbio, aqui e ali...); “em última análise” isto, em “última análise” aquilo, e parece que o raio da análise não chega ao fim, pelo menos à final ou à finalidade da análise não se chega.
PG – Creio que te arriscas, isso é obviamente a muleta mais resistente no discurso do Valter.
SMH – Não limites a tua percepção, além do Valter há muito mais oradores sujeitos a este artifício. E a muitos outros, muito mais feios: os que exprimindo-se no singular acrecentam “digamos” e “quer dizer”, ou o bem pior “quer-se dizer”, ou falam e escrevem em “termos” disto, em “termos” daquilo, tantos termos ou não termos; os que colocam o que dizem sempre no fundo: “no fundo” isto, “ no fundo” aquilo, tudo lá em baixo, no chão mais raso e pisado de todos; ou o anedótico “ao nível” disto, e “ao nível” – obviamente – daquilo, daqueloutro, cicrano, bletrano e gás propano, nivelado por alturas e intensidades obscuras, abstractas, como nos convém, para não termos de ser mais explícitos, de saber usar a linguagem para descrever o que pretendemos que os outros percebam, muito uso da nossa recorrente fé em que meia palavra (ou nem sequer tanto!,) basta, muita fé. Muita.
PG – Podemos prosseguir na entrevista?
SMH – Ainda não. “Mais ou menos”, outra agressão ao discurso; a “dada altura”, “determinadas e certas” situações, “determinados e certos” objectos, determinados, muito bem determinados!, certos, muito certos!, mas permanecem sempre por descobrir, talvez pela incapacidade de utilizar a linguagem. “Talvez” também é um dos horrores da mesma, “não-sei-o-quê” e “não-sei-que-mais” são mais duas expressões medonhas; “isto é assim” é a infantil incapacidade de começar uma frase..., indefinível, pior ainda: “isto é assim” é a derrocada de uma ideia ou intrução antes sequer de se tentar revelá-la. Mas, a pior de todas as aberrações, a mais mal-parecida e inconsequente e torpe e destemperada e vã e desassisada e ilógica e abstrusa e imprópria é... a “coisa”.
A “coisa” é a designação mais falta de lógica que serve para preencher o que não nos surge no discurso, é o substantivo que não se encontra, e que não se investiga, que não se deseja pois exige articulação, exige o favor constante, afinal, esvazia-se-lhe a substância, que arbitrariedade a nossa, roubamos o sentido ao que queremos exprimir, porque de tal não somos capazes.
PG – A “coisa” parece-me bem útil, pelo menos no entendimento jurídico.
SMH – E por aí se deveria quedar, imagina, por falta de destreza chegamos a trocar as ideias por coisas! Infelizes, nós.
PG – Podemos continuar?
SMH – Estamos a continuar, por que te parece que não continuamos? Até me interrompo por aqui, pois estes foram apenas os preconceitos, faltam ainda as discriminações positivas que tenho (temos) das palavras, os preconceitos coloridos, ainda me falta descrever-te o outro hemisfério da paleta.

Intervalo para pop melódica, intuitiva, que me congraça mais do que um beijo de um deus no intervalo dos cuidados mais do que indulgentes de um “spa”, mas haverá maior indulgência do que um beijo de um dos deuses? Como? Um tratamento num “spa”?

Snow Patrol – Chocolate;
Björk – All is Full of Love (all fucking stress or rudeness vanishes; I shut off the bloody monitor and bathe in sounds);
Sigur Ros – Njosnavelin (The Nothing Song?);
Sufjan Stevens – John Wayne Gacy, Jr. (damn, I’m singing for the ugly neighbours late night, an angel voice for a devilish biography, the outcome is incredible and of a painful sorcery, we will all die, putain!, tragedy!, we wil live on);
David Bowie – Moss Garden;
Elbow – Powder Blue + Red;
Placebo – Lady of The Flowers;
Bob Dylan – Bob Dylan’s Dream;
Mogwai – Helicon 1 (oh, for all fucks and all sakes, pieces of delicious heaven and delicious energetic hells fondle my skin, lips, ears, sex, and scattered spirit, this one is always away and unreachable);
Lift to Experience – To Guard and to Guide;
Fluke – Cosh (yes, Sirs, I do belong to a past dance era, Orbital’s The Box is an intriguing body motion track, I’m too sensitive to blips and bleeps);
Radiohead – Fake Plastic Trees (she looks like the real thing, she tastes like the real thing, my fake plastic love, I could mould you into a heart bypass);
Arab Strap – Tubulence 1;
The Smiths – Asleep;
Spiritualized – Broken heart.


PG – Ouves vozes?
SMH – Algumas, e tu? Achas que temos companhia?
PG – Acho. Como no teatro, as vozes dos actores, as dos espectadores, da orquestra quando a há, da equipa técnica quando a há, das pessoas rondando a porta digerindo a inveja de não terem bilhete, dos pedintes que as abordam quando se dirigem - vencidas – para casa, da família abraçada à televisão, dos vendedores às suas portas ao início da noite que tentam convencê-las da utilidade de uma colecção de plásticos, da família e amigos dos vendedores, dos credores dos vendedores, de todas as pessoas que os explusaram – a eles e aos plásticos – sem contemplações, e todos os fantasmas de todos os tempos que atormentam esta população que aqui tomou forma, todos juntos produzem uma quantidade de vozes constante, um ruído contumaz, mais caótico do que o da torre de babel higiénico, mas nunca ensurdecedor, não conseguiríamos ensandecer se surdos fossemos.
SMH – Se daqui a uma semana te entrevistar de novo, repetirás o mesmo que agora relatamos?
PG – Boa pergunta, mas a resposta não o será... o mais natural é não me lembrar mesmo do que disse hoje, não tenho o talento do Viegas, que nas entrevistas sobre o “Longe de Manaus” cedia sempre as mesmas respostas. Agora que me ponho a reparar, talvez lhe tivessem feito sempre as mesmas perguntas. Não consigo funcionar assim, não consigo responder duas vezes à mesma pergunta. Quero improvisar e, de preferência, contradizer-me. Por isso me calo quando me perguntam – “Então, está tudo bem?”, já não há mais respostas possíveis.
SMH – Qual a tua relação com a poesia?
PG – Fui obrigado a ouvir mais versos em umas semanas, do que em três décadas de vida, e ouvi a repetição de nomes, desta vez semeando-me a curiosidade de lhes ler a produção, a realização, a encenação
SMH – E qual a tua relação com a prosa?
PG – Imagina uma bactéria tentanto fabricar um míssil nuclear para fazer dano a este planeta, é esse o papel em que me sinto, perante a prosa.
SMH – O que gostarias de ter dito?
PG – Que andamos todas enganados sobre o amor verdadeiro. Não só quanto à repetição algo primata dos comportamentos sociais que se vão exagerando, mas especialmente porque acredito que grande parte do conceito de amor como o percebemos foi desenvolvido por autores homossexuais, que a Alta Autoridade Heterossexual nunca suspeitou terem essa origem, e tomou-a como modelo formidável do amor.
SMH – E há então dois tipos de amor?
PG – Não, claro que não. Quando muito, pequenas particularidades. Mas há que reconhecer a autoria deste nosso amor, rir abertamente do ridículo que é todas as colossais histórias de amor heterossexual se servirem das formas de amor homossexual. A liberdade sexual é ainda lucescente. E esperemos que assim continue por um bom tempo, antes que se degrade tanto e multiplique os desvios procedentes dos supostos comportamentos mais ordinários.
SMH – Bela ambiguidade. Faltou isto: porquê Simão Mil-Homens?
PG – Porque e mil homens há mais virtudes e vícios do que num só homem. Amanhã terias uma resposta diferente, hoje é mesmo esta.

Comissão 3.1

Carta de uma admiradora ao autor:
“Custosamente, tenho de interromper os meus momentos consigo: comecei a ler o agora estreado romance e, duas horas e onze minutos depois, os desconfortos do corpo interrompem-me; sete minutos depois voltei à leitura; três horas e vinte e seis minutos depois dou sono ao corpo, doze minutos gastei nas mundanices que necessita a nossa superfície corporal, quatro horas e cinquenta minutos de sonolência, sono, despertar; mundanices alimentares e alguns cuidados com a superfície corporal, rituais menores, rotina de deslocação, concentração possível no trabalho, esforço agudo de comportamento mercantil (“comercial” já se usava no meu século, mas há palavras que tocam mais sininhos, especialmente se ouvidas no silêncio da leitura, permita que me expresse assim), aceno afirmativamente (tantas vezes que numa manhã poderia vazar um poço, estando o meu queixo ligado a uma nora); saída para almoço, várias necessidades básicas frugalmente satisfeitas, uma hora e dez minutos consigo nos degraus mais recatados do edifício, várias páginas, deslumbrada, custa-me interromper... concentração possível no trabalho (C.P.T.), esforço agudo de comportamento mercantil (E.A.C.M.), aceno afirmativamente (A.A.); rotina de deslocação (R.D.), rituais menores (R. M.), mundanices alimentares e alguns cuidados com a superfície corporal (M.A.A.C.S.C.); três horas e dois minutos na fábula, atendo aos desconfortos do corpo (D.C.) que me tomam dezoito minutos; volto ao terminável desassossego de páginas cheias de mundo novo; uma hora e cinquenta minutos depois o resto do corpo vence-me; sonolência, sono e despertar (S.S.D.) durante cinco horas e catorze minutos; M.A.A.C.S.C.; R.M; R.D.; C.P.T.; E.A.C.M.; A.A.; várias necessidades básicas frugalmente satisfeitas (V.N.B.F.S.), uma hora e doze minutos a descobrir o que ontem à noite ficou suspenso antes de bater página com página, e colocá-lo deitadinho a meu lado, ao livro, não a si, como também acredito desejar. Não consegui metê-lo numa sigla, nem num singelo acrónimo: apesar de o ter enclausurado nas minhas severas rotinas; não o esclarecerei se escrever que dá sentido e equilíbrio ao meu quotidiano, até por ser o contrário mais verdade. Desejo mesmo nunca o meter numa sigla, traga-me sempre mundo novo, vivo e diferente, amores ácidos, volúpias vertiginosas interrompidas no segundo imediato à plenitude (ah, ai, ui, tenho de fechar os olhos, apertando com força as pálpebras, largar-lhe a frase para tentar prolongar os prazeres um pouco mais, não tenho de adivinhar: os arrebatamentos que transmite são tão breves quanto intensos, e consegue sempre terminá-los com violência). Talvez pela minha condição feminina gostasse que a sua proporção de prazeres não fosse tão parca face às mágoas. Estou errada, claro, talvez ainda agarrada a ideais acolescentes.
Talvez imatura, talvez superiormente lúcida por querer mais ternura sua, e menos crueldade. Afinal, somos amantes contra ambas as nossas vontades, mas só eu sofro com este desamor torna-viagem.
C.P.T.; E.A.C.M.; A.A.; R.D.; R.M.; M.A.A.C.S.C.”

Comissão 3.0

Narração no plural.
Narração não utiliza o passado.
(próximo projecto, narração sem negações)

Judeu.
Salvador Maia, judeu.
Com esta graça se apresenta, e explica-se como sendo a única disponível para honrar o seu legado religioso.
Com a morte do Maia patriarca, responsável por lhe transmitir o culto e os ritos judaicos, Salvador tem de educar-se sem tutoria, buscando os deuses nas circunstâncias da vida, sem esquecer porém do povo que lhe ascende.
No dia em que acontece de nos conhecermos, aparece torcendo um papel, aproxima-se dos pais e do noivo da vítima, reúne-os na amplitude dos braços, amplo amplexo, aproxima-os de si, com uma expressão gravíssima, como que se preparando para falar a eminentes académicos sobre os males do mundo sem solução. Aqui vai um deles.
- Lamento, está morta.
Baixa um pouco a cabeça, roda-a e larga-os de imediato, abandonados ao seu choque e desespero e choro e dor e ruína sentimental; a morte servida como um comprimido forçado pela garganta abaixo, sem água. Salvador? Não.
Mais tarde, após concluir todos os pequenos procedimentos, emociona-se e confessa-nos que é a primeira vez que serve de arauto da morte. E, claro, não sabe lidar com as emoções próprias, de segundos, quanto mais de terceiros.

- Onde está minha chave? No sítio do costume? Que sítio é esse? Se gosto mais de café, chá, leite, água ou sumo de maçã? Carro vermelho ou azul-escuro? Cheiro a fósforo queimado ou a sofás de pele velhíssimos? Filmes a preto e branco e cinza ou programas de rádio sobre o regadio do milho e o viço das coníferas? Tempo frio e chuvoso ou solarengo?, roupas que me denunciam os mamilos? Raios, sou um homem, que interesse têm os mamilos de um homem?
Enquanto assistimos ao seu descarado gozo em confrontar-nos com as nossas pequenas e pouco sérias necessidades de exposição e troca de gostos (confirmações, as confirmações, e mais confirmações), lembramo-nos das vezes em que de repente fica sozinho numa mesa, num banco de jardim, num murete, porque algo ou tudo acumulado do que diz espanta toda a gente. Lembramo-nos de três exemplos, um é conhecido como a responsabilidade social sobre o (mau) cheiro.

- Os horrores que se produzem debaixo dos nossos braços…
Solução um: amputá-los, acima do ombro e recortando bem dentro do tronco para não correr riscos.
Solução dois: amputar o nariz a todos os habitantes do planeta. Parecem-me ambas bem razoáveis, agora devem ser ambas escrutinadas pelas massas, pela ditadura das massas, para melhor qualidade de vida neste sítio. Dizem-nos que o cheiro é uma propagação de moléculas de uma substância, apercebidas pelo nosso órgão olfactivo; muito bem, então com este facto científico se poderá atacar e fazer prender todos aqueles seres imundos que nos estão – literalmente – a borrifar com o sovaco pestilento. Já basta termos de levar com milhares de moléculas de excrementos de caninos, felinos, sem podermos atacá-los por isso, basta, é ordinário e demasiado.

Outra, que nos deixa ainda perplexos, é a interrupção de uma conversa sobre intelectuais; o pensamento de Bê, umas décadas adiante de Éfe e Zê; os originais da antiguidade, o Ésse e o Pê, que estão tão actuais e presentes nos ensaios de Dê, Tê, Jota, Éle e Quê; as concepções de Ó sobre a estranha obra de Cê; e Salvador que aproveita um intervalo pequeníssimo entre uma intervenção e outra que ameaça esboçar-se:
- Discuto sempre isso com todos os taxistas que encontro, mas não há consensos! Uns dizem-me que subindo a Avenida Mendes Carvalho, tomando a segunda saída na Rotunda do Marquês do Rio, seguindo a Rua do Infante até ao Parque dos Ventos, logo ali descendo aquela viela estreitinha, como se chama?, tem ali uma loja de sementes na esquina... do Outeiro, Viela do Outeiro!, e chegamos aos serviços de saneamento. Outros dizem-me que basta descer a Avenida da Graça... depende sempre do lado do mundo em que se está.

A mais rápida a espantar os ocupantes da mesa, durante uma discussão sobre as ocupações lúdicas das crianças de hoje, que não são tão interessantes quanto as da nossa infância, as de agora que não deixam tão boas recordações quanto as de então, não desenvolvem a cratividade, não se brinca com outras crianças, não isto, não aquilo, a modernidade está em falência, é uma herança muito má para as crianças. Bom mesmo é o exemplo da nossa infância, e talvez a dos nossos pais, e pouco mais além do que isso.
Salvador ainda tenta perceber se as opiniões em redor conseguem entender algum proveito material e intelectual no progresso. Não. Embevecidos pela nostalgia, nada mais passa nesse filtro pouco sóbrio.
- Sabeis, as infâncias das crianças de há quinhentos anos atrás são as mais felizes, muito mais felizes do que as nossas infâncias, e do que quaisquer outras, imagino as suas supremas alegrias atirando bosta uns aos outros, atirando grandes pedaços de bosta uns aos outros.

Esta capacidade de repelir as audências terá em breve, uns quantos dias apenas, um soberbo teste: Salvador Maia é orador convidado num congresso (medicina da séria, a dos volumes dignos do nome, e não daquela improvisada a cada disposição dos praticantes – prodígios dotados de poderes impressionamentes, especialmente a pose; nem da especializada na mistura fortuita de ervas e pós e flores); e esperamos com ansiedade para saber da resistência da audiência inteira do congresso. E o assombro dos presentes quando se apresentar:
- Judeu.

Monday, May 08, 2006

Comissão 2.0 - um fadinho sem (estridente) guitarra

Senhor de Chamilly,

Fantasio a surpresa que vos trará esta carta, depois de me dizer e desdizer, depois de prometer amar-vos, e prometer desamar-vos, regressando agora ao silêncio da vossa leitura, ocupando o vosso espírito preenchido por toda a espécie de conquistas. Seguramente terei alguma relevância na vossa rememoração. Pois, adianto desde já que tenho inspirado e concretizado vários amores, e raramente senti com outros homens e mulheres estados de enlevação tão intensos quanto vos inspirei a sentir, e eu própria senti. Convosco, e com outros homens e mulheres.

Surpreendo-vos? Já não concebeis a Mariana melancoólica persistente, cismando na gestação de uma longa e estimada dor, vogando entre o desespero e o conforto trazido pela mágoa, devota, fidelíssima até à redução a pó mergulhado num sepulcro; que Mariana sou eu que agora se vos apresenta?
Creio que duas Marianas conhecestes: a amante inaugurada, e a amante amarga e viúva, vossa correspondente. Sim, viúva, pois tive de assassinar-vos para poder produzir o luto que originou esta terceira Mariana; olá, Noël; olá, Mariana.

A Mariana que se evadiu de Beja, com o incentivo cúmplice dos seus irmãos Baltazar e Maria Peregrina, dois meses vivendo em Oviedo, um ano e uns dias em Pau, e desde há pouco menos de dois anos vossa vizinha, na colina que avistais da janela do vosso quarto, onde me permito imaginar que estais agora segurando estas folhas de papel descaradamente conterrâneo vosso (assim como o das minhas duas anteriores cartas que recebestes), e de onde o vosso olhar imediatamente se desviou para contemplar a vista e tentar encontrar vestígio meu. Olhai, aqui em frente, em Dennevy.

Estais sobressaltado, tentanto ocultar esse ansioso sentimento de Sophie de Volanges (1) que passeia os seus prendados bordados, e a felicidade de um ventre inflamando-se após frequentes visitas vossas ao baixo-ventre da lindíssima senhora!
[Passear a felicidade é de uma nobreza que vos falta em absoluto; devíeis descarregar o vosso semblante adminutim, ou resulta assim melhor na vossa caça/recolecção (2) de amantes?]

E assunto tão oportuno é este!, as vossas repetidas visitas ao baixo-ventre de muitas outras senhoras são uma oportunidade de coligir um tratado sobre os abusos nos jardins do Senhor!
Tanto odaliscas quanto esposas prometidas ao meu Amo, repetidamente todas as amantes do harém de Deus serviram o vosso deleitado contentamento!, quereis lista detalhada com datas e nomes? Não sei que opinião (furiosa ou condescendente?) terá o meu Deus deste vosso insofreável e irregular apetite, importa-me tão-só o desígnio que eu própria persegui, Senhor de Chamilly: perseguir-vos.

Escrevi-vos anteriormente sobre a necessidade de um artifício para nos fazermos amar. Não um qualquer artifício; incidentes e acidentes podem bastar, pode a natureza soer conseguí-lo.
Quero revelar-vos que mais delicado artifício é o trabalhado para revidar o amor recusado.
Revelo-vos esse meu talento, aprimorado nos detalhes - como este que me envaidece - de enviar daqui as cartas para Portugal, para vos serem reenviadas com o lacre do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição. Deixei o papel indígena para me denunciar. Não fostes capaz de o aperceber, não vos censuro; com suficiente insistência, conseguiria que me chegasse a Beja qualquer luxo ao alcance da fortuna dos Alcoforado (apesar da fertilidade de minha adorada e ida mãe, acudida pela assídua e incansável presença do senhor Possimando no seu baixo-ventre, vai extinguir-se a nossa linhagem; Baltazar há já algum tempo se professou, Maria Peregrina continua – cada vez mais assustada – reclusa no convento em Beja; apesar da plena utilização dos instrumentos de prociação que Deus me deu, não se adivinha uma geração mais, glória ao falhado pai), seja este papel de aspereza quase sensual único na vossa terra, sejam os vinhos mais raros e caros – que me desvergonham – desta Borgonha (3). Tentei denunciar-me para que vos precavêsseis da minha revolta urdida em sangue e sebo recolhido desta fronte franzida por choros medievos, inconsequente desafio a que me propus!

Haverá razão perceptível pela vossa desrazão quanto aos motivos da minha já menos encoberta intriga?
Devo condescender um pouco mais do que uma partícula: as queixas de amor não são boas de ouvir senão em recitativos obrigatórios, ou em árias de grande estilo (4); que bárbaro o meu engano!, por momentos tão inflamada de amor que julgava ser ele tão poderoso que vos fizesse nele arder, e assim tão simplesmente vos prostrasséis diante do altar onde todas as transgressões se sucederam! Confundi em demasia o amor com o amante (5).
O que mais vos admiro? O que mais vos imitei...
Que improvável candura existe numa noviça? Que necessidade de carinho e afecto existe nestas mulheres roubadas às famílias preocupadas com dotes e riqueza? Que capacidade de entrega há nelas? Que qualidade de amantes existem nas mulheres prometidas a Deus?

Por isso vos aviastes no viveiro de amantes de Deus! Por isso vos imitei! E o quanto vos percebo!
Com que transporte se entregam! A pele suavíssima do peito, as ondulações até ao ventre por experimentar, a penugem quase invisível do interior das coxas que me arrepiam os lábios, o adivinhado tumulto se avanço para as mucosas, e, lá chegando e afagando o fechado e quente casulo, roçando língua, lábios e rosto naquela tensa boca de fogo e humidades fragantes, que exaltam o animal a ela unido, transpiro perfumes, anexo-me a ela, exibo-lhe o meu casulo, que se abre mais imensamente do que as penas do pavão, que expele magma do interior deste planeta retesado, que ritual tão graciosamente primitivo!, e não tenho como te fecundar senão com prazer, basta-te?, gerarás uma obstinada paixão porque te dediquei esta volúpia? Que insana consequência. Insana Mariana, insanos amantes de Mariana e de Noël de Chamilly! Que extraordinárias e inconscientes escolas de amantes são os conventos! Quantos aos seminários, deixai o Rui (6) pronunciar-se.

Quereis culpar o nosso Deus? Como vos atreveis? Tentai culpar o Monsenhor Onésimo Cepeda de Oviedo, esclarecedor por me haver demonstrado ser tão grande a maldade nas nossas intimidades, que logo me atrevi a concluir e elucidar esse senhor que sendo assim grande o nosso mal, igualmente e exacto seria o nosso prazer, porque diante do desejo de o conhecer, só remanesce ao pecador a vontade de o experimentar (7).

Imaginai, senhor, as blandícias de Sophie de Volanges instruídas e emendadas por esta distinta Mariana; foi excelente amante minha!, assim como o foram Mademoiselle de Tourvel, de Carnay, de Merteuil, de Rosemonde, Maria da Adoração, Maria de Jesus, Clara de Todos os Santos, Joana de Lencastre, Maria do Mar, Júlia Luz Maia, Carlota Luís, Constança Assis, Antonieta das Neves, Teresa, Ana, Felícia, Leonor, Umbelina, Clara, Luísa das Dores, Fátima, Maria Manuel, e tantas outras que alternaram entre as suas e as minhas garras.

Sabe de que pequena vitória posso arrogar-me? O pálido e sedoso corpo de Sophie de Volanges foi primeiramente conquistado por mim!, pudesse eu fertilizá-la e estaria agora um Alcoforado agigantando e agitando-se no seu ventre. Corrigi o tom de cada gemido seu nos momentos da nossa lascívia, cada estertor rouco tangente ao êxtase teve condução minha, pode supor-se proprietário destes feitos, talvez mediato, mas nunca imediato.
Tenho, também, de aplaudir-me por ter conseguir conquistar-vos esse notável corpo de prazer, não fora o vosso aproveitamento das minhas cartas, a sua troca de género e adaptação, e nunca haveríeis consumado qualquer contacto ou coito com ela... Neste sentido, Sophie de Volanges apenas foi conquistada pelo meu talento. Pudésseis vós experimentar o que consegue aquele corpo produzir nas minhas mãos...! Pudésseis vós... que desconchavo...!

Esta é a Mariana que derivou do vosso abandono. Vivereis comigo involutariamente. Não vos acerqueis de Dennevy com inquirições, tenho amantes instruídas vos afastar. Podereis julgar que ainda vos amo, tonta ilusão!, eu amo-me. E basta.

Notas do tradutor:
(1) parece que a família De Volanges tem mais drama amoroso na sua história do que no relata o senhor Pierre Ambroise François Chordelos de Laclos, cuja mais famigerada obra parece ter tido alguma inspiração nestas cartas;
(2) o colega antropólogo que se pronuncie sobre a possibilidade ou não da tradução do vocábulo anglo-saxónico, afrancesado, ou de mais distante origem;
(3) aqui está uma feliz tradução, fortuita, mas prova de que há traduções que resultam mais deliciosas do que a obra no idioma original
(4) Les Liaisons Dangerouses, página 121, malditos ficcionistas que sempre alguma inspiração mais que concreta lhes serve os propósitos da ficção...;
(5) L.L.D., página 171;
(6) Rui? Quem é o Rui? Será o irmão emigrado de um autor esquivo?, cuja sexualidade poderá ter aqui alguma pertinência? Que fazem os sacerdotes com os jovens enclausurados?, ou que sinceridades se despertam neste durante o recolhimento?
(7) L.L.D., página 173

Notas da consciência do tradutor: qualquer plágio de ideias ou descadarada cópia de frases da obra de Chordelos de Laclos é engano do leitor, respeita-se tão-só a honesta sequência histórica/propriedade intelectual;
Dennevy está situada a Oeste de Chamilly, se alguma encosta o autor ou narrador ou tradutor sugeriu, desenga-se o leitor, a Oeste de Chamilly estende-se uma várzea sem acidentes até Dennevy.

Comissão 1.0 - curso de escrita (re)criativa

Solilóquio, Pinóquio, Tóquio, impróprio, trompas de faló...(tudo isto faz sentido!)
Eu, Valter Hugo Mãe (tão Mãe quanto Henrique de Carvalho é agora Saurimo!; mas, será que nesse além de três décadas de distância, a alguns milhares de léguas/milhas marítimas e terrestres/quilómetros//braças/jardas/pés/polegadas/milhares de milhões de pequenas medidas de distância, escrevia eu: será que nesse além angolano também houve alguma preocupação de vestirem a emotividade?, houve a busca dela?, tanta quanto o expressivo e desarmante conceito de mãe?), que já não sou eu próprio mas uma marioneta que instruí, por mim autorizada, para experimentar-vos enquanto narradores atolados da vossa incipiência (para quem apenas escuta, este amador narrador escreveu incipiente, e não insipiente, embora tivesse hesitado uns segundos gordos sobre qual deles seria a menos imperfeita significação), recuo novamente... para experimentar-vos enquanto narradores atolados na vossa incipiência, propus-vos este objectivo para apreciar as delicadas abordagens de uns, e as possíveis variantes até ao atrevimento e abuso de quem se servir desta liberdade (com ou sem pressuposição da existência ou não da liberdade, contei-vos este meu sentimento?, sobre a minha escrita livre?) DELEGADA para construções e enredo impróprios.

Algo sobre mim: obscenidade é uma palavra deliciosa.
Se colapso, derramo prosa e poesia.
A prosa é a minha amante a tempo inteiro, a poesia é a Senhora tentação (com a qual demoradas volúpias são impossíveis), é a aparente disponibilidade do ser muito atraente na propriedade vizinha, com quem tenho intimidades com basta frequência. Isto parece contraditório porque se a prosa é uma amante a tempo inteiro, como posso ter disponibilidade para ter intimidades frequentemente com a poesia? Simples, é que se nas minhas intimidades com a poesia a prosa as presencia - cúmplice - mas com decoro, nas minhas intimidades com a prosa tenho de envolver com violência carinhosa a poesia. Não interpreteis isto livremente, esta liberdade ainda não vos foi permitida.
Há cavalos sem cabeça; este facto é coerente. Assim aqui atirado sem maior explicação, só concluís que sou estranho e gero estranheza (ah, meu narrador libertino...); o que quero transmitir-vos é que há ficção dentro da própria ficção. Parece-vos um sofisma?, uma vulgaridade?, um enredo para pasmar e dispersar as atenções? Pois, ficai sabendo que dentro da ficção cabe tudo, é um verdadeiro continente de possibilidades e impossibilidades; dentro da ficção cabe tudo como acontece fora dela, no mundo, realidade, ethos, cabem todos os fenómenos que não conseguimos perceber “aqui” na realidade, se é que vos consegui embalar com tão poucas frases e fazer com que imaginásseis a realidade no meio deste texto!, retomo então o controlo dos fios, e sois novamente as minhas marionetas; não fujais imediatamente, acabei de enfiar-vos a minha mão pelo vosso fundo escuro, subi-a pelo vosso interior, e animo-vos os movimentos e expressões com os meus dedos; fantoche ou marioneta, o que interessa é a metáfora, e ainda bem que nesta relação promíscua entre Valter e narrador, este último não se lembrou de enfiar no meu fundo escuro a sua mão...

Sou um vampiro faminto, quero sangue, sangue novo, sangue novo e diferente. E quero descobri-lo na raça humana, neste pequeno grupo que aqui atraí; sei bem que – saciado ou não – em breve terei de roçar os meus dentinhos em pescoços com outros sangues, com maiores diferenças. Depois conto-vos como agoniza a zebra, o gnu, a serpente, a morsa, o panda vermelho, o dragão de Comodo, o lince da Malcata (o narrador quis intrometer-se, e de tão enlevado que estava eu com as sensações anteriores, não lhe opus resistência, nem sequer filtrei ou dei qualquer atenção ao que me obrigou a escrever, algo como “só conseguir imaginar um restaurante de rodízio de churrasco dentro de um jardim zoológico”, julgai-o vós que não consigo desconcentrar-me do que se passa na minha língua).
Títulos. Posso escrever prepósteros? O narrador não mo permite. Recomeço. Títulos ousados, que intrigam. São os títulos dos meus livros. Prender o leitor à minha escrita começa logo nessa primeira frase inscrita na cara do livro exposta ao mundo: toma lá mundo. Tudo pode ser (mas nunca deve dizer-se tudo deve, ou querer-se que seja) literatura, até o nome de uma editora. Objecto Cardíaco pode parecer-vos artificioso, mas relei este nome..., o que é um ou o objecto cardíaco? É a, ou são as coisas do coração.
Pois... tenho que ter alguma agilidade comercial, mesmo que assim discreta.

Segundo andamento: só se ofende quem está disposto a ser ofendido
“Estou farto de Angola!”, disse o meu pai; e quem disse “vamos embora”? (Quem perguntou isto?) Sem LSD, recordo o dia da revolução (todos os dias são de revoluções, mas naquela houve mais balas e confusão). Paços de Ferreira só tem história porque é necessário preencher o tempo com ela; cresci feliz e as letrinhas dos livros ofereceram-me esta miopia: grata e generosa literatura. Cheguei a Vila do Conde e lancei a âncora. Daqui não saio. Ou saio, mas contrariado. Se saio de casa às nove horas da manhã, às dez já estou com saudades. Saudade, até, se a essa hora ainda não ultrapassei o portão do meu próprio jardim; não interessa e não é exagero, é o próprio acto de partir que isto origina. Já me aconteceu igual ao partir todo o tipo de objectos queridos – é o abandono instantâneo -, mas quem se afasta nestes casos não sou eu, claro. Escuro.
Quais são os dois refrigerantes mais apreciados em Angola? Coca-cólera, Angola-cola.
Mais energia! Escrevei como se contivesséis metade das nuvens do planeta, a outra metade aproximando-se, negra, olho de tubarão, carregada da carga oposta à vossa, chocai com ela e electrizai-vos, electrocutai os vossos arredores, o meu desejo é que um dia sejais um cogumelo atómico, cada um de vós, que mais bela floração de energia conseguis imaginar? Quero essa energia nos vossos textos!

Ainda não consegui descobrir quem foi/quem é/quem será o homem mais infeliz do mundo, este narrador diz que o conceito de infelicidade a cada momento e disposição se altera, eu não posso responder, porque o verdadeiro Valter não tem exactamente voz própria aqui, e o narrador tem algum pudor em fingir e usurpar a minha identidade inteiramente; eu creio (aqui temos em grande plano o paradoxo que este texto desenvolveu) que o narrador é um imbecil, nega-se a admitir inteiramente o pudor, quer que dividamos irmãmente o pudor/incapacidade em isolar a maior infelicidade num ser só e congelar esse momento. (E – pior ainda – crê ser uma perda de tempo tentar escrevê-lo, mas pode bem vir a mudar de ideias, é natural e saudável na espécie).

Escritores estranhos, marginais, malditos, são os meus prepostos, com o sentido de preferência.
Bastando uma pessoa que maldiga o meu trabalho (ou intenção de trabalho, deus tão adorado meu!, quanta correcção científica...!), então sou um maldito?, eu e todos que partilham comigo este entendimento? Somos todos malditos? Então, por todos os deuses e deusas, nus e nuas, em cópulas divinas com os seus corpos assombrosos e deliciosos e maliciosos e OBSCENOS, dou dois, três, epifania!, quatro, terei energia para mais?, cinco e recupero o fôlego, seis, sete saltos no ar e desisto, só sobra mais energia para isto: EU SOU UM MALDITO!, agora que berrei, posso voltar aos meus modos plácidos, ao meu humor discreto mas constante.
A William Seward Burroughs II faltou-lhe experimentar pelo menos uma droga, este texto. Que sentido dais a droga?
(Há mais e mais perverso humor para além disto. Eu não disse isto, nem indiciei, mas alguém se atreveu a fazê-lo por mim. De onde estão a sair estas vozes? Afinal, quem é o covardezinho? Está cá mais alguém além de Valter e do narrador?)
Ah, e muita atenção a isto: a página – que será uma das nossas medidas de trabalho – terá de ser respeitada, não sejais espertinhos ao escrever com letra pequenina, com as frases apertadinhas umas contra as outras, e roubando toda a margem para caber mais texto. Não terei piedade de vós, e sereis humilhados perante todos os demais. Exceptuado isto, até sou bonzinho (mas nunca inofensivo, tomai boa nota).
Esclarecimento às senhoras presentes, mães de donzelas: a cobrição das filhas implicou lencinhos de linho e rendas primorosas; afinal, alguma virtude havia na história, essa.
O Pinóquio terminou o solilóquio; e é esta a sua melhor poesia, fazer rimar duas palavras. Bravo.

Não dar cavaco

Cavaco Silva?O Cavaco Silva? Corrijo: o Cavaco silva?
Não me exprimo como quero, mas como consigo. É esta a minha habilidade, ou a falta dela. Faço descer o Cavaco à minha igualha, ele pode ser presidente do que quiser ou conseguir, eu sou o presidente de um planeta inteiro, ainda não descoberto, que - revelo-vos – está preso dentro da minha cabeça, por ter com ela colidido, numa das minhas exorbitações.
(é segredo, mantende-o!)
Voltando ao homem e às suas capacidades circences: o Cavaco silva, mas não serpenteia (como o Rui Rio), e mesmo que também produza veneno, bem tóxico, letal, não acredito que o consiga injectar com aqueles dentinhos.
Grande feito!, o Cavaco silva!, ora essa!, e eu? Eu?Ele silva, e eu rebusno.
Intervalo.
Tenho a anunciar a esta congregação que ando a escrever. Não consigo evitar. Quero muito evitar. Ajudem-me. Eu ando a escrever!
Por favor!, por bondade vossa, socorram-me! Não consigo fazê-lo de outra forma, raios, eu ando e ando e ando e farto-me de andar a escrever, mais raios.
Queria tanto escrever sentado.

Friday, May 05, 2006

A desonra

Se reencarnasse, querer-me-ia com uns peitos sobredimensionados.
Paraguaio?
Para atirar à cara dos homens: toma lá mama, mama.

Voz maninha que encontrou uma brecha no monitor, por onde se infiltrou até chegar a este texto:

"E caudas de castor?"

Voz mais bravia ainda lhe responde, vinda do grandioso "nada" (este e outros literários desarranjos estão na mesma secção que "maior silêncio", ouvido ou lido hoje mesmo, ruboresci quase até à incandescência, decadência, indecência, insciência, onde há um dicionário de rimas para isto continuar?), e me deixa atolado em embaraço, raios, isto não, muito menos em público...

"Dentro dos suportes mamários, nem interessa o pouco volume, são enformados com precisão assim sedutora, que nos leva o lábio inferior ao chão".

Autor:
Clos Mogador 2003 meets Mr. Jameson